UN BEAU MATIN
Após assistir A Ilha de Bergman, da diretora Mia Hansen-Løve na 43ª Mostra, a escolha por assistir ao seu novo filme na 44ª edição do festival se relaciona diretamente com a qualidade do anterior. Apesar dos cenários completamente diferentes, há uma grande semelhança temática entre eles: a história de uma mulher em crise. Se em A Ilha de Bergman observamos um olhar cinéfilo, focado no diretor sueco, e na necessidade de se colocar presente nas experiências vividas, essa obra funciona no mesmo sentido,mesmo considerando a ausência de Faro.
Léa Seydoux interpreta brilhantemente Sandra, uma jovem viúva que equilibra sua vida pessoal com o reencontro com um antigo amigo ao cenário familiar em pedaços, dada a doença degenerativa avançada de seu pai. Antes de se tornar um grande drama familiar sobre esse homem enfermo, a direção de Hansen-Løve deixa claro que trabalhará todas as personagens e lhes dará profundidade. O centro da narrativa nunca se torna o pai, mas sim Sandra e os diversos arcos dentro de sua vida.
Apesar de toda a técnica cinematográfica realizada de maneira correta, ela raramente é inovadora. O foco é realmente nas relações interpessoais e na memória, seja através da criação de momentos a serem recordados, seja a falta de controle sobre como seremos lembrados após a nossa partida. É nesse sentido que as duas obras da diretora se aproximam, com um olhar existencialista sobre a existência comum ao cinema francês, mas raramente explorados a partir de um ponto de vista feminino, ainda mais com a quantidade de camadas apresentada.
Mãe, amante, filha, viúva, irmã. A diversidade de papéis existentes no dia-a-dia da protagonista se espelha também em todas as outras personagens, que não apenas cumprem a sua metade na relação com a protagonista, mas ainda dão um vislumbre de possuírem as mesmas características na vida de outras pessoas. Assim, o personagem de Clément se torna um pouco deslocado exatamente pela ausência de informações sobre a sua família, algo irreal na criação de vínculos como os mostrados na obra. Esse arco acaba se tornando o menos interessante, ainda que sua resolução indique o caminho da diretora para a dúvida existencial.
Um olhar excepcionalmente afetivo que permite aprofundamentos e aproximações diferentes à obra em decorrência às suas experiências de vida, o longa-metragem merece ser visto e revisto para interpretação de suas diversas camadas de significado. E indica mais um sucesso para a diretora, que segue trilhando uma carreira excepcional.
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A DONZELA
Assistir a um primeiro filme de um diretor é sempre uma experiência diferenciada, mesmo quando já se pode ter uma ideia de seu estilo pelos seus curtas, como é o caso de Graham Foy, diretor de A Donzela. Com um longa-metragem que mistura lembranças de sua cidade natal com acontecimentos totalmente fictícios, ele cria um bom retrato sobre a juventude e a sensação de solidão que muitas vezes se inicia nesta etapa da vida.
Um dos aspectos diferenciados do longa-metragem é seu tom, que fica no limite entre o onírico e o realista, tendo momentos voltados para cada um dos dois e não dando respostas definitivas às questões, mas sim levantando questionamentos. Desde a fotografia que foca em regiões com belezas naturais e seus detalhes, que parecem deslocados ao espectador de grandes cidades e que passou parte dos últimos anos em isolamento social, até o roteiro que não deixa claro se uma personagem está viva ou morta, o realismo não se mostra tão importante quanto as sensações. Através da mistura entre diálogos, trilha sonora melódica e uso de iluminação expressiva, entende-se o sentimento de instabilidade e não-pertencimento com o qual se dialoga ao longo do filme.
Assim, ainda que o filme apresente um ritmo lento, com planos longos e silêncios exagerados, somados a momentos nos quais o roteiro não entrega informações relevantes e torna a experiência entediante, é criada uma experiência sensorial bastante particular. É necessário destacar também as atuações, que mesmo nesses momentos sem movimento conseguem segurar o espectador através de micro expressões e bastante sensibilidade, o que também cabe nos méritos do diretor por trabalhar com atores pouco conhecidos.
Não é um filme que agradará a todos – algo comprovado pelas desistências da sala de cinema em sua primeira metade e pelas críticas mistas recebidas internacionalmente. Mas, para aqueles que desejam se aventurar em algo novo, ainda que não tão bem aparado como os clássicos hollywoodianos, é uma boa pedida na programação da Mostra.
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OS ANOS DE SUPER-8
Como mulher, é bastante comum eu preferir assistir filmes de outras mulheres, dada a desigualdade encontrada no mercado de trabalho que inclui o audiovisual. Sabendo então da existência desta obra, assinada pela mais recente ganhadora do Nobel da Paz junto ao seu filho em uma reflexão sobre o seu passado através de fitas gravadas pela família, esse interesse cresceu exponencialmente.
Annie Ernaux e David Ernaux-Briot realizam um trabalho que compila em apenas uma hora questões profundas sobre o conceito de família, erros do passado e até mesmo as ilusões da esquerda ocidental durante a Guerra Fria. Apesar do formato pouco inovador de utilizar narração da diretora com as imagens ao fundo, o texto e a montagem fazem com que ele não se torne cansativo. Nele, suas habilidades como autora se juntam ao cinema para criar um produto final único e que consegue elevar sua vida pessoal a reflexões gerais sobre a passagem de tempo.
Pode parecer prosaico essa reflexão ao assistir filmes antigos, afinal, quem nunca pensou em seus entes queridos e falecidos ao assistir um VHS antigo? No entanto, no filme isso é realizado de maneira que consegue explicar parte da situação político-social francesa durante os anos 1970 e 1980, detalhes sobre ser uma mulher escritora e até mesmo questões conjugais que ficam claras ao rever materiais antigos. Com o presente da perspectiva criada pelo tempo e o acesso às imagens da vida cotidiana, a autora consegue criar uma prosa que, apesar de verborrágica, ecoa nos espectadores.
É importante destacar como essa obra acaba trazendo uma reflexão sobre o próprio instrumento audiovisual, uma vez que discorre sobre as filmagens como momentos importantes para a família, nos quais se sabia estar criando uma memória que não seria apagada, e utiliza-se a montagem e roteiro para dar novos significados a isso. Se o cinema tem essas três etapas de produção, é impressionante como aqui eles são manipulados para criar a noção de continuidade.