JOYLAND
Quando Joyland recebeu oito minutos de palmas no Festival de Cannes, isso voltou todos os olhos para Saim Sadiq, o primeiro diretor paquistanês a conquistar uma premiação no festival. Considerando sua sinopse, de uma família tradicional que começa a ruir quando o homem mais novo começa a trabalhar em um teatro erótico como dançarino para uma mulher trans, é de se imaginar o quão difícil foi gravá-lo em um país conservador.
O que atravessa a obra e tem reflexos em qualquer espectador é a exemplificação do machismo estrutural em todos os personagens, do pai idoso e hétero até Biba, a mulher trans. O roteiro consegue unir todos os arcos de personagem, que não são simples, nesse tema. É claro que existe um fator cultural importante para a compreensão da obra, considerando as regras mais específicas do islamismo que não são familiares ao espectador brasileiro. E nesse sentido, provavelmente pensando que o filme seria mais assistido por audiências internacionais do que em seu próprio país dado seu tom contestador, há algumas explicações bem colocadas para não parecer excessivamente expositivo. Ainda em relação ao seu roteiro, há um excelente trabalho em construir personagens, colocando em todos eles defeitos e qualidades que se equilibram e criam um resultado imperfeito e humano.
A elaboração desses personagens se completa com as atuações, que também mantém toda a seriedade dos assuntos tratados equilibrados com momentos sentimentais maravilhosos. Rasti Farooq, que interpreta o personagem Mumtaz, faz um trabalho excepcional de atuação com o corpo, mudando sua postura e feições ao longo de sua transformação ocorrida na obra. Alina Khan, que interpreta Biba, consegue explorar as cenas com fortes emoções de forma única, sendo as cenas de briga o ponto mais alto de sua atuação. É importante observar que a personagem criada é completamente segura de quem é, algo raro nos cinemas com representatividade trans, e muito provavelmente orientado pela própria atriz. Esse feito se repete no longa brasileiro Paloma, que também conta uma narrativa trans com uma mulher trans como atriz principal e também está sendo exibido na Mostra.
O formato do filme é bastante clássico, sem grandes tentativas de inovação em questão de roteiro ou fotografia – mas realizando tudo que se propõe de maneira excelente. É interessante que os espectadores assistam em uma boa tela e com bom som para aproveitar melhor a experiência, que é tão completa quanto melancólica.
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FIRE OF LOVE
Talvez um dos filmes mais diferentes assistidos na Mostra, Fire of Love reconta a história do casal Katia e Maurice Krafft, vulcanólogos tão apaixonados pelas explosões de magma quanto um pelo outro. Com imagens de arquivo deixadas por eles e algumas animações e cenas da televisão francesa, a diretora Sara Dosa recria todos os seus passos na carreira e no amor.
Este é um dos casos no qual a vida real é tão impressionante que basta o filme acompanhá-la, e o próprio filme reconhece isso falando sobre a improbabilidade do casal com a mesma profissão rara em seus primeiros minutos. Mais improvável ainda é ter o acesso a estes materiais e construir uma narrativa que não seja extremamente expositiva a partir deles. Isso é alcançado através de um roteiro sensível ao tratar de informações complexas e da edição primorosa, que mantém o espectador interessado em todas as imagens apresentadas.
É difícil, em 2022, um filme falar sobre o amor de maneira tão direta. Em uma tendência da sociedade e da arte, passou-se a tratar os sentimentos de afeto de uma maneira mais complexa, com camadas. Se deparar então com uma relação tão intrinsecamente passional é tanto um choque quanto um alívio para os corações românticos. Isso se completa ao perceber o risco envolvido em todo o processo, dada a letalidade de se trabalhar a beira de vulcões – e se retroalimenta, dada a beleza chocante mostrada nas cenas captadas. A fixação que os vulcões causaram no casal consegue se refletir para os espectadores, e a obra quase hipnotiza quem a vê. Esse efeito se complementa pela leveza de tom, parecido com aquela que o casal apresenta nas entrevistas mostradas em tela.
Ocorre uma experiência completa, na qual seguimos pela jornada com o casal e saímos mais informados e fixados com a ideia de assistir ao magma vermelho, tão incrível em suas cores e texturas. Perceber o arco de criação e destruição geológico, sua compreensão e reprodução pelo casal e o fato de que esse é um ciclo absolutamente inevitável é uma questão que acompanhará os espectadores pelos dias seguintes, fazendo com que o filme apenas cresça em sua estima. É mais um dos casos nos quais se perde parte da experiência ao não assistí-lo na imersão da sala escura e sem interrupções.
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PALOMA
Temáticas LGBTQIA+ são frequentes na 46ª edição da Mostra de São Paulo, sendo as narrativas trans o foco de dois dos filmes de maior destaque, o brasileiro Paloma e o paquistanês Joyland. É interessante que, além da coincidência temática, ambos tenham a direção assinada por homens cisgêneros, mas que conseguem com suas obras dar voz e contornos a personagens trans que não sejam definidas apenas por seu gênero, tendo uma forte construção e grande profundidade.
Em Paloma somos apresentados rapidamente ao improvável sonho da protagonista: se casar de véu e grinalda na Igreja Católica. Mas, em um roteiro bastante clássico e não por isso menos interessante, aos poucos ela descobre que a realização de seu sonho na verdade é o início de uma espiral negativa em sua vida. São as suas camadas e detalhes que lhe dão a oportunidade de crescer, como ao tratar da transfobia e suas microagressões, e o recorte de gênero, raça e classe social da personagem que não a definem, mas são mostrados no mundo à sua volta: o analfabetismo, o pouco acesso à cultura e divertimento, a própria simplicidade de seu lar.
Dentro desse recorte, a profundidade visual ajuda a criar a textura da narrativa. Seja com os planos que incluem Paloma em uma natureza gigantesca ou no contraste entre a casa simples e arrumada e seu pequeno altar, cheio de detalhes e contradições, o diretor Marcelo Gomes consegue criar um equilíbrio entre o onírico e inocente da protagonista com a realidade desoladora que a rodeia. Há cenas específicas como o detalhe de Paloma treinando sua assinatura, o modo que ela abraça sua filha, os olhares e cumplicidade com sua ex-esposa que dão o tom do caráter da personagem – enquanto a ausência de um foco específico da transfobia, vinda de todos os lugares, e de muitas pessoas que aparecem desfocadas em tela, fazem a contraposição.
É notável a atuação de Kika Sena, que equilibra bem o tom doce da personagem com a sua relação com a realidade. Ao observar o seu nível de comprometimento com Paloma, cuja vida é tão distante da sua (mestranda, diretora teatral e atriz), percebe-se o esforço para dar corporeidade a essa mistura entre força e leveza que dão gênese à personalidade da personagem, possibilitando que todos criem empatia com ela. Através das entrevistas e seus escritos, percebe-se também que a parceria com o diretor foi elemento fundamental para esse sucesso.
Ainda que o longa não seja extremamente inovador em forma, ele consegue fazer com que espectadores reflitam sobre a realidade de pessoas trans a partir de uma história real recontada em adaptação. Seu sucesso é fruto do trabalho de uma excelente equipe, alinhada com temas contemporâneos e relevantes.