46ª Mostra de São Paulo: Gigi A Lei, Hamlet e Triângulo da Tristeza

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GIGI A LEI

A cena de abertura do filme é cativante e cria um vislumbre sobre o que será visto em seguida: um longo plano com dois vizinhos discutindo sobre as árvores da casa de um deles, com apenas um sendo fracamente iluminado. Aqui, todas as características que estarão presentes ao longo do filme estão concatenadas: o foco no diálogo e nas atuações, a criação de um personagem ao mesmo tempo adorável e detestável e o visual que varia do realismo ao fantástico – sem diferenciá-los ao espectador.

Aos poucos se compreende a história do policial que vive em uma pequena cidade italiana e que se encontra em uma pequena crise, uma vez que o corpo encontrado nos trilhos do trem não deixa nenhuma pista sobre o que aconteceu com o homem. Em uma mistura de investigação do ocorrido, flertes com a nova policial que atende seus chamados na central e uma exploração da pitoresca região e seus personagens, a obra cresce exatamente ao construir esse cenário imaginário no qual tudo é possível.

Neste grande universo de possibilidades é onde ele também exagera, perdendo a atenção do espectador por se repetir na fórmula da exploração e se tornar cansativo. Há também uma representação de um ponto de vista muito masculino que beira o machismo e, apesar de o filme não gerar lições de moral a partir de seus personagens, pode incomodar parte das mulheres – como pessoalmente me incomodou .

Com muita forma e pouco conteúdo, há um elemento que parece particular à cultura italiana e que se perde na tradução, representado pela música cantada ao final do longa-metragem e que não deve ser conhecida para a maior parte dos espectadores internacionais. É uma obra interessante como exercício audiovisual de quebrar limites das imagens, mas acrescenta pouco como discurso.

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HAMLET

O simples fato de um filme ser finalizado 6 anos após sua gravação é um bom indicativo do caos que estava sendo previsto durante a captação das imagens. Dito isso, em um momento no qual a cultura brasileira está sofrendo um desmonte por parte do atual governo e a própria Mostra não pôde captar recursos pela Lei Rouanet, dependendo de investimentos privados, negar a relevância do que está sendo mostrado é também ignorar parte do problema que precisa ser resolvido.

O longa-metragem debate as ocupações de escolas pelos alunos secundaristas em em reação às propostas realizadas em diversos estados, e em nível nacional para reformas e terceirização do ensino público do país. Através do caso de uma escola específica em Porto Alegre e utilizando o exemplo de um jovem dentro do movimento, exemplifica-se um dilema que é inerente à humanidade. O uso do dilema shakespeariano é um bom lembrete, e os interlúdios do início e final do filme geram um tom poético em oposição ao seu conteúdo documental.

Um dos destaques da obra é seu roteiro e montagem que ao invés de apenas glorificar ou criticar o movimento mostra que ele é realizado por partes menores e humanas, capazes de acertar e errar, sendo isso importante em seu processo de amadurecimento. Dar rostos e personalidades ao que foi demonizado pela mídia ajuda a compreender sua organização e importância.

Além disso, é muito interessante como assuntos tais quais a importância da arte e de lideranças representativas são tratados dentro do longa de maneira que explora o seu caráter audiovisual. No primeiro caso, na cena que mostra a jornalista se opondo ao fotógrafo, e no outro no desabafo final de Frederico, o jovem Hamlet. Essas camadas adicionadas criam uma profundidade que abrange além do material documentado.

Apesar da tristeza por saber que o projeto teve essa demora no lançamento, com o caos político apenas tendo se deteriorado nos últimos anos, ele é ótimo para nos mostrar a gestação da crise atual. Quem sabe o questionamento levantado sobre ser ou não ser, e a resposta que o filme nos dá sobre todos os tons em meio à essa dualidade, nos tragam alguma esperança de uma realidade mais contestadora no futuro.

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TRIÂNGULO DA TRISTEZA

São raras as sessões de cinema nas quais simplesmente se pode sentir a tensão da platéia, estática no ar. No entanto, quando isso acontece, geralmente é um indicador de que estamos assistindo um filme que polariza opiniões e explora os limites do que é ou não aceitável. E, com Triângulo da Tristeza, Ruben Östlund conseguiu fazer ambos, gerando reações que variam da ovação no Festival de Cannes até uma série de críticas que indicam o longa-metragem como exagerado e o pior de sua carreira.

Contando uma história dividida em quatro atos, temos primeiro a apresentação do universo da moda, seguida pela relação do casal principal, composto pelos modelos Yaya a Carl, seguida pela apresentação do conflito e sua resolução, que se passam a partir de uma viagem em um iate de luxo com outros passageiros peculiares. Em cada um dessa miríade de personagens acrescentados se adiciona uma camada de humor extremamente ácido e carregado de críticas sociais.

O filme é provocante porque ele brinca com a paciência do espectador desde os seus primeiros minutos que falam da indústria da moda, criticando toda a estrutura do varejo ao comércio de luxo. A partir de então, aborda-se machismo estrutural, masculinidade frágil, neocolonialismo, capitalismo, comunismo, racismo, fim da União Soviética, críticas à direita, críticas à esquerda, críticas aos ricos, críticas aos pobres. Não há nenhum tema que seja tratado como um dogma e é exatamente a partir deste caos que a estrutura do filme funciona, fazendo o espectador ansiar pela próxima insanidade que aparecerá em tela. Um bom aviso é que o diretor usa todos os recursos disponíveis, sendo um deles a escatologia, então para quem tem limites quanto ao que deseja ver em tela, talvez seja melhor não assistir a este longa.

O roteiro muito bem estruturado e com um timing cômico excelente é o primeiro ponto para seu funcionamento, apesar de cada um dos atos se estender um pouco, o tornando um pouco cansativo ao final de duas 2 horas e 27 minutos. Östlund cria esse complexo emaranhado de críticas de maneira excelente, tanto como roteirista quanto como diretor. Junto a isso se somam as excelentes atuações de cada um dos atores, não importando o destaque de seus personagens na narrativa. Ainda assim, é essencial frisar Harris Dickinson como Carl, Dolly De Leon como Abigail e o derradeiro papel de Charlbi Dean, de Yaya. Dado seu falecimento por um mal súbito, torna-se ainda mais triste ver todo o talento que a atriz apresentava.

O filme cumpre toda a sua proposta de surpreender o público através de uma crítica bem-humorada e profunda, com uma aura um tanto pessimista. Para quem está familiarizado com a obra e tom do diretor, não haverá grandes surpresas, mas para quem o desconhece, pode gerar certa inquietação.

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