John Wick (EUA, 2014)
Título Original: John Wick
Direção: Chad Stahelski
Roteiro: Derek Kolstad
Elenco principal: Keanu Reeves, Michael Nyqvist, Alfie Allen, Willem Dafoe, Dean Winters, Adrianne Palicki, Omer Barnea e Toby Leonard Moore
Duração: 101 minutos
Disponível em: Hbo Max
A origem de uma lenda silenciosa
Antes de se tornar uma epopeia grandiosa que flerta com o delírio mitológico, John Wick se apresenta como uma peça relativamente contida — ainda que já delineie, com precisão quase clínica, o que viria a ser a espinha dorsal da franquia. Se os capítulos seguintes ampliam o escopo, as instituições e os códigos desse universo paralelo, o filme de 2014 opera com uma lógica mais enxuta: tudo gira em torno da figura central. Wick é o sistema. Wick é a mitologia.

Ao contrário das sequências que mergulham fundo na encenação coreografada como um balé operístico, o primeiro filme tem uma abordagem mais crua. As cenas de ação não são moldadas para a dança, mas para o impacto. Existe algo animalesco na forma como o protagonista entra em cena: ele surge, elimina ameaças e desaparece, como uma entidade das sombras. É uma introdução brutal e direta que não busca desafiar a física nem seduzir pelo exagero. Wick é eficiente. E isso basta.
O universo que o cerca já dá sinais de um imaginário curioso — o hotel que proíbe assassinatos, as moedas douradas, os códigos de honra. Mas aqui, esse pano de fundo existe quase exclusivamente para alimentar a aura enigmática do protagonista. A construção de mundo serve como moldura para uma figura que, sozinha, já sustenta a narrativa. Com o tempo, esse mundo cresce tanto que engole o próprio Wick, mas neste início, ele ainda reina absoluto, como um mito urbano moldado por sussurros.
A direção evita os vícios mais comuns do gênero à época. Não há câmera trêmula, nem cortes incessantes. Chad Stahelski — ele próprio vindo do universo de dublêse da coreografia de ação — aposta na clareza e na composição. A violência é gráfica, mas não gratuita. Há ritmo. Há musicalidade nos impactos. E há um prazer visual que nasce justamente da ordem com que o caos é conduzido.
Claro, nem tudo funciona. O uso pontual de câmera lenta soa deslocado, quase decorativo. Em contrapartida, o filme encontra pequenos brilhos que ressoam para além do texto. A luta final, por exemplo, ecoa referências de videogames e resgata visualmente o clímax de Metal Gear Solid 4. Um detalhe que diz muito sobre a forma como o longa se ancora numa sensibilidade millennial, onde o fetiche por armas se mistura à melancolia silenciosa de um protagonista anacrônico — um herói de ação clássico sendo (re)descoberto por uma nova geração.
Mais do que ação estilizada, o que sustenta John Wick é o circuito subterrâneo que o filme desenha: uma rede de assassinos, prestadores de serviço e regras internas, um submundo funcional que lembra o cinema asiático mais do que o modelo hollywoodiano tradicional. Nessa teia, Reeves caminha como quem conhece cada nó — e sua jornada de vingança se torna uma peregrinação quase espiritual.
Não é sobre superar obstáculos ou encontrar redenção. É sobre reafirmar, com cada tiro e cada golpe, quem ele é. John Wick não quer nos convencer de nada. Ele só quer nos lembrar do que já sabíamos — que, às vezes, basta um homem só para colocar o mundo em ruínas.