Crítica | Especial de Halloween | Tempo

Tempo (Estados Unidos, 2021)

Título Original: Old
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan a partir de uma história de Pierre Oscar Lévy
Elenco principal: Gael García Bernal ,Vicky Krieps, Rufus Sewell, Alex Wolff, Ken Leung e Nikki Amuka-Bird
Duração: 1h48min (108 min)
Disponível para compra e aluguel na Apple TV

Uma característica que poucos – ou ninguém mesmo – tiveram coragem de contestar em relação a M. Night Shyamalan é a sua autoralidade. Autoralidade essa que lhe é muito cara, mas que acompanhou a sustentação de seu nome na indústria mesmo nos seus piores momentos: ninguém faz filmes como os de M. Night, para o bem e para o mal. E somente ele poderia, ao menos de forma audiovisual (já que é baseado numa HQ), ter dado vida a algo como Tempo.

E me parece ainda mais impressionante notar que, mesmo após mais de vinte anos na indústria sendo vendido como “o cara dos plot twists”, os filmes de Shy têm batido cada vez mais de frente com o que há de mais superficial nessa afirmação. Ela já nasceu envelhecida ali no próprio O Sexto Sentido (1999), uma vez que o que ele oferece através desses twists está muito mais para a potencialização da recapitulação de seus filmes (excluo aqui O Último Mestre do Ar e Depois da Terra) do que um elemento tão solto por si só, basta lembrar da fenda no tempo que acontece em A Vila (2004).

Tempo bate igualmente de frente com o que essa imagem midiática de Shyamalan fala sobre o próprio, já que o final (que foi e é uma enorme arma para os detratores do indiano ou até mesmo para quem acredita que já conhece seu cinema à fundo) está muito mais para uma mera confirmação do que o roteiro planta diversas vezes ao longo do caminho (com um didatismo que não deixa de incomodar, há diálogos assustadoramente expositivos por ali) do que um elemento que dará um sentido definitivo a tudo. Aliás, Shy está visivelmente empenhado em dar um sentido literal para os acontecimentos e não deixa nenhum espaço para interpretações, inclusive estica seu próprio desfecho para isso, uma vez que a experiência de gênero é a “desculpa” da vez para que o diretor exercite o que lhe há de melhor: sua câmera.

Pois desde o início, a linguagem que Shyamalan constrói aqui está interligada a ela, é na câmera, no extracampo (reparem na cena da epilepsia, quando o diretor dá um giro direto no olhar de um dos personagens antes de revelar o acontecimento principal da cena), na limitação cênica, que a narrativa de Tempo será estabelecida (o frame do pai e da mãe dividindo o espaço em cena com bonecos diz muito sobre isso). Mais do que isso, o diretor propõe a transformação gradual dessa linguagem inicialmente estabelecida e que vai se dilatando tão rápido quanto o envelhecimento daqueles rostos numa praia que lhes condena o findar da vida, ao esgotamento do tempo que o próprio cotidiano já lhes anunciava, seja através de um tumor, de um caso de demência, da própria velhice, ou do que mais interessa pra Shyamalan, a família.

As relações familiares estão ali não somente para serem moldadas pela narrativa, mas para a própria narrativa ser moldada através delas. Notem como o cineasta é inteligentíssimo nessa modulação: a imersão de gênero estabelecida ali pelos primeiros 40 minutos vai cedendo espaço a um body horror quase experimental conforme os efeitos da degradação do corpo dos personagens se tornam mais evidentes e inevitáveis, e não há nada que impeça ele de explorar o impacto imagético dessas transformações até às últimas consequências. Há uma morte particularmente MUITO cruel nesse caminho, mas veja bem: Shyamalan quase que imediatamente remodela esse body horror nos últimos instantes para uma lindíssima cena onde o casal, de cabelos grisalhos e dentes apodrecendo, troca suas últimas palavras sobre o amor que nutriam/nutrem pelo outro. E aqui estamos falando de Shyamalan, um cineasta cujo apego pela representação da família sempre será o que mais importa, no final de tudo. Tempo não é diferente disso.

E acho que vale comentar sobre o final de tudo aqui: é, no mínimo, desgostoso. Claro, as pistas sobre as respostas por trás de tudo estão ali ao longo da experiência (e o papel onde Shy se auto-escala aqui é deliciosamente irônico ao pensarmos disso), mas há toda uma necessidade tipicamente hollywoodiana de deixar tudo claro ATÉ DEMAIS para o público depois de uma experiência tão dilatada em sua temporalidade. Isso me faz acreditar que é muito mais um desfecho para diluir a estranheza desconfortável que é tão bem construída pelo trabalho de câmera quase genial do diretor, do que como algo para cimentar uma lógica definitiva sobre os mistérios estabelecidos até ali. Mas é curioso, ao mesmo tempo em que o final não parece o mais ideal para Tempo, as escolhas de Shyamalan me fazem admirar imensamente a sua falta de hesitação em fazer o que quer, por mais que eu discorde tanto desses caminhos. Ao mesmo tempo em que é didático, Shyamalan também não nos leva inteiramente pela mão.

E com isso, acredito que Tempo se aproxima menos de Fim dos Tempos (2008), com o qual tem sido bastante comparado (e com razão, devido a extrema teorização dos personagens sobre a ilha), e mais com A Dama na Água (2006) no sentido da crença na fabulação, já que há um detalhe que faz toda a diferença: tudo ganha uma lógica racional no final de tudo, menos a própria ilha: afinal, por que ela faz o que faz? Shyamalan convenientemente nega uma resposta para isso, reforçando o caráter tão lúdico da narrativa – ele explica tudo no final, mas não nega o lado lúdico de tudo aquilo, mesmo diante das escolhas mais duvidosas. Talvez por isso a polarização no cinema do indiano tenha se tornado quase uma marca do próprio: Shy tem uma confiança quase sobrenatural nas suas escolhas, e cabe a nós decidir se elas parecem as melhores ou não, mas convenhamos, quantos autores podem dizer isso de si mesmos?

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