Foi Apenas Um Acidente (Irã, França e Luxemburgo, 2025)
Título Original: Yek tasadof-e sadeh
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
Elenco principal: Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten e Majid Panahi
Duração: 105 minutos (1h45min)
Novo filme de Jafar Panahi é manifesto contra a perpetuação da violência em prol da redenção
Uma família faz uma viagem tranquila de carro por uma estrada escura até que, sem querer, o automóvel atropela um cachorro. O pai para o veículo, sai para checar o para-choque e retorna ao volante sem prestar socorro nem conferir se o animal continua vivo. A filha pequena se chateia e começa a chorar pelo bichinho, com um fantoche de cachorrinho felpudo nas mãos. A mãe, então, tenta confortá-la: “Foi apenas um acidente”.

Com essa cena simbólica, Jafar Panahi estabelece o ponto de partida para uma história sobre violência, tortura, arrependimento e perdão. O motorista em questão é responsável não apenas pelo sofrimento de um cão, mas também de inúmeras pessoas que ele torturou por anos em nome de um regime autoritário. Uma de suas vítimas, porém, o reencontra e, ao contrário do animal que ficou estirado no asfalto, volta para morder o oficial que desgraçou sua vida.
O que Panahi faz em Foi Apenas um Acidente é profundamente contracultural. Um cineasta censurado, proibido de filmar e de deixar o Irã por duas décadas, condenado a seis anos de prisão por “fazer propaganda contra o regime”, coloca seus personagens diante de um dilema ético que ele próprio parece enfrentar em relação aos seus opressores: devolver na mesma moeda e extravasar a ira ou quebrar o ciclo da violência e oferecer a mão à redenção?
A resposta não é simples, assim como nenhum acidente. O que interessa ao diretor não é a primeira reação dos personagens ao se depararem com as cicatrizes de um trauma antigo, mas o modo como cada um elabora e processa essa dor. O protagonista e o grupo de ex-prisioneiros, também torturados pelo mesmo homem, oscilam entre o ímpeto de enterrá-lo vivo em vingança e o medo de se tornarem parecidos com ele.
Em Foi Apenas um Acidente, Panahi suaviza alguns de seus traços estilísticos. Ele não participa diretamente da narrativa nem explora tanto os limites entre ficção e documentário que marcaram Táxi Teerã e 3 Faces, por exemplo. Ainda assim, sua assinatura como realizador permanece intacta, mais sutil, mas igualmente humana. A sensação de que o diretor apenas ligou a câmera e deixou a realidade conduzir a narrativa é constante, mesmo que o roteiro saiba exatamente onde quer nos levar dentro daquele furgão claustrofóbico.
A ideia do roteiro, também assinado por Panahi, surgiu a partir de conversas com outros detentos durante o período em que esteve preso. Posteriormente libertado graças à pressão internacional, ele rodou o filme clandestinamente no Irã sob a vigilância e perseguição do regime islâmico, que continua a reprimir cineastas e artistas do país.
Talvez por essas experiências tão pessoais, a alternância entre a comédia tragicômica e o thriller político funcione tão bem. Rimos quando o grupo é abordado pela polícia e tenta disfarçar o corpo escondido no porta-malas, e, com a mesma intensidade, prendemos a respiração quando o torturador finalmente assume a culpa pelos crimes cometidos, implorando por perdão — em uma cena esmagadora banhada pela luz vermelha do farol do carro.
Apesar de rejeitar o rótulo de “cineasta político”, é inspirador ver como Panahi se posiciona dentro e fora de seus filmes. Em uma das exibições do longa na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ele dedicou a sessão a todos os cineastas iranianos que, assim como ele, insistem em fazer cinema mesmo sob o risco de serem presos e traumatizados como os personagens de Foi Apenas um Acidente.
Os dois minutos de silêncio que dominaram a sala entre a última cena e o início dos aplausos talvez sejam a melhor forma de definir o filme e o vazio ensurdecedor que a violência deixa em nós. A escolha da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano não poderia ter sido outra senão esta obra magistral e corajosa, que abandona a ira para abraçar a redenção.
Filme assistido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo




