Wrong Husband (Canadá, 2025)
Título Original: Uiksaringitara
Direção: Zacharias Kunuk
Roteiro: Zacharias Kunuk e Samuel Cohn-Cousineau
Elenco principal: Theresia Kappianaq, Haiden Angutimarik, Leah Panimera, Mark Taqqaugaq e Emma Quassa
Duração: 1h 40min (100 min)
Existe um momento inevitável na vida de todo cinéfilo: se perguntar sobre as origens do cinema de documentário e acabar caindo na obra Nanook, o Esquimó (1922), um marco do gênero por ser considerado o primeiro longa-metragem documental. Então, se esse estudante tiver a mente inquieta o suficiente, irá pesquisar mais sobre as condições nas quais o filme foi filmado e perceber uma questão muito importante quando se trata da retratação de um povo por pessoas que não pertencem a ele. É muito difícil que esta pessoa que deseja fazer um retrato consiga criar uma visão que não seja estereotipada a partir de seus próprios preconceitos sobre este povo, sendo que aqui os preconceitos não estão sendo colocados apenas como visões negativas, mas quaisquer ideias preconcebidas.

Assistir a um filme como Uiksaringitara mais de 100 anos depois do lançamento do outro é uma espécie de lembrete de que a arte está inserida em uma sociedade que se movimenta, e que ela também vai se movimentar. Tudo bem que comparar um documentário antigo com uma ficção atual é como comprar mamões e limões ao dizer que ambos são frutas. Mas perceber que a sociedade mudou o suficiente para que os povos originários que recebiam uma representação externa agora tenham acesso e conhecimento para realizar suas produções que melhor os representam é um marco que sempre deve ser comemorado. E se aqui estou utilizando o caso de inuítes, o mesmo facilmente se aplicaria para indígenas brasileiros.
Após todo esse preâmbulo, o filme apresentado é um romance bastante clássico, de um casal que acreditou a vida toda que iria ficar junto e que, por conta de uma situação específica, acaba se separando. É o tipo de universalidade de tema que permite que qualquer pessoa acesse o filme, por mais que não conheça os pormenores da cultura que vão sendo apresentados. É inevitável que aconteçam, inclusive, alguns choques culturais ao se perceber questões tanto relacionadas à sobrevivência em um ambiente inóspito por conta do frio, quanto da organização social que parece mais estratificada do que moradores de grandes cidades estão acostumados. Mas o diretor se mostra bastante consciente disso e apresenta esses detalhes de maneira bastante natural, criando o ambiente adequado para que qualquer um compreenda a obra – mas possivelmente, uma pessoa com mais conhecimentos sobre a cultura inuíte perceba maiores nuances do que leigos como eu.
A narrativa é bem construída e apresenta elementos gráficos e sonoros que ajudam muito na composição do clima mais sobrenatural que permeia todo o longa-metragem. Além de efeitos especiais que deixam claro o que ocorre em cena, há um design de criatura para o troll que o torna um pesadelo inesquecível. Isso é ainda somado a uma trilha sonora extremamente etérea, que transparece tanto uma espiritualidade quanto uma noção de que este é um conto especial que está sendo compartilhado com seus espectadores.
O filme é um excelente exemplo do que acontece quando temos cineastas vindos de diversos contextos, mostrando que a habilidade de contar uma boa história independe de se compreender todos os pormenores que estão apresentados. Tanto em sua forma de colocar o amor quanto a noção de família em tela, o diretor nos apresenta a sua cultura e nos lembra que algumas questões são sim inerentes à humanidade.