A Melhor Mãe do Mundo (Argentina e Brasil, 2025)
Título Original: A Melhor Mãe do Mundo
Direção: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Elenco principal: Shirley Cruz, Seu Jorge, Rihanna Barbosa, Benin Ayo, Luedji Luna e Katiuscia Canoro
Duração: 105 minutos
Distribuição: Galeria Distribuidora
Sinopse: Uma mãe desesperada foge com os filhos, escondendo-os em seu carrinho de reciclagem. Sem-teto e vulnerável, ela transforma a dura realidade deles em uma jornada emocionante, protegendo-os da verdade sobre sua situação precária.
A Melhor Mãe do Mundo é um filme que não tem pressa, nem truques narrativos mirabolantes. O novo trabalho de Anna Muylaert parte de um princípio tão simples quanto devastador: dar forma, nome e tempo de tela para aquelas que normalmente estão à margem da sociedade e do cinema. Com Shirley Cruz à frente de uma interpretação dilacerante e contida, o longa constrói com firmeza uma narrativa sobre resistência silenciosa, feita não de grandes viradas, mas da luta diária por dignidade e afeto.

Gal, a protagonista, é uma mulher preta, catadora de recicláveis e mãe solo de duas crianças. Desde o primeiro plano, Muylaert enxerga essa personagem em sua totalidade como sujeito, não como alegoria. A diretora se recusa a recorrer ao exotismo da miséria ou à estetização da dor. Ao contrário, filma a realidade com naturalismo duro, mas também com humanidade. E é nesse gesto que o filme encontra sua força: em colocar no centro alguém que, historicamente, é mantido à margem. Uma figura que carrega em si intersecções brutais de gênero, raça, classe e também uma violência e que, por isso mesmo, raramente é retratada senão como pano de fundo na ficção audiovisual brasileira.
Se Shirley Cruz é o alicerce do filme, o elenco infantil funciona como sua válvula de escape. Benin Ayo e Rihanna Barbosa conferem leveza, humor e energia à trama, sendo uma espécie de portal entre a aspereza da vida e a fantasia dos sonhos infantis. A sinergia entre os três personagens escapa do campo da representação e alcança um grau raro de verdade cênica. Há uma organicidade comovente nesse núcleo familiar improvisado, onde o amor não é declarado, mas transborda nos gestos, nos silêncios, nos olhares.
Muylaert filma São Paulo sem glamour, mas também sem cinismo. A cidade pulsa como espaço de exclusão, mas também como território de afeto e disputa simbólica. A violência que atravessa Gal – física, patrimonial, psicológica – é mostrada sem vitimização, mas com lucidez. E mais do que denunciar, o filme escancara os mecanismos sutis que mantêm mulheres negras presas em relações abusivas: o medo, a dependência financeira, o amor, a culpa. “Ele é pai dos meus filhos” ou “ele põe comida em casa” surgem não como desculpas, mas como sintomas de uma estrutura que normaliza a violência e exige das mulheres um tipo de resistência sobre-humana.
Talvez o único ponto em que o filme hesita seja justamente em seu desfecho. A tentativa de arredondar a narrativa num tom quase de conto de fadas soa deslocada frente à crueza que o precede. Ainda assim, não compromete o que há de mais potente na obra: sua entrega sincera à verdade de seus personagens. Muylaert não quer responder todas as perguntas, e que bom que não quer. Porque o maior mérito de A Melhor Mãe do Mundo é esse: fazer com que essas perguntas finalmente sejam feitas.
Com um olhar atento às pequenas grandezas da vida cotidiana e uma confiança rara na força de seus intérpretes, o filme se posiciona como um dos trabalhos mais necessários do cinema brasileiro recente. E mais do que necessário: urgente. Não porque denuncia, mas porque representa. Porque olha de frente. Porque acredita, com a serenidade de quem conhece o ofício, que há dignidade onde o mundo só vê o resto.