Ainda Não É Amanhã (Brasil, 2024)
Título Original: Ainda Não É Amanhã
Direção: Milena Times
Roteiro: Milena Times
Elenco principal: Mayara Santos, Bárbara Vitória, Clau Barros, Cláudia Conceição, Guta Menelau, Lalá Vieira e Mário Victor
Duração: 73 minutos
Sobre o afeto e o silêncio: o gesto contido de Ainda Não É Amanhã
Há um gesto de contenção em “Ainda Não É Amanhã” que molda a arquitetura do filme. Em sua estreia na direção de longas, Milena Times opta por uma abordagem sem arestas: é na sobriedade dos gestos, na rigidez dos quadros e na contenção emocional que o drama da jovem Janaína (Mayara Santos) se desenha. A estudante de Direito, que logo nos primeiros minutos é apresentada como uma jovem centrada, comprometida com os estudos e afetuosa com a família, vive uma experiência limite ao descobrir-se grávida. No entanto, em vez de explorar essa jornada por meio de um realismo brutal ou de um retrato trágico, o filme caminha pelo campo da intimidade. E, principalmente, da dignidade.
Janaína não é punida por sua escolha. Nem por engravidar, tampouco por querer interromper a gravidez. Em uma narrativa na qual a autonomia feminina é inegociável, a personagem encontra apoio em uma rede de mulheres — amigas, professoras, vizinhas, a mãe, a avó — que, em silêncio ou em palavras, seguram sua mão quando ela precisa. Essa delicadeza no traçado das relações é o que sustenta o filme emocionalmente. O namorado, ainda que presente, é figura lateral. Quem acolhe, quem escuta, quem orienta são outras mulheres. A sororidade aqui é ação concreta, e não apenas discurso.

Mas se o conteúdo é potente, a forma vacila. A mise en scène, embora coerente com o projeto estético, em pouco contribui para complexificar o drama interno da personagem. Há um academicismo formal que engessa a encenação: personagens milimetricamente posicionadas ao centro do quadro, profundidade de campo quase inexistente, silêncios limpos de ruído, e um controle excessivo sobre o som e o enquadramento que parece temer o caos da vida. A câmera segue Janaína com sobriedade, mas sem jamais atravessá-la. Registra seu rosto aflito, mas não nos permite tocar em sua angústia. O resultado é um cinema que respeita demais sua personagem a ponto de torná-la, por vezes, inacessível.
Ainda assim, o filme possui lampejos de lirismo visual — breves, é verdade, quase tímidos, mas reveladores de uma busca por forma que ultrapasse o realismo. Um mergulho no mar, uma luz azulada que percorre o corpo de Janaína, uma metáfora espacial de opressão. São fragmentos de um gesto mais ousado que, infelizmente, não encontra eco no restante da narrativa. Em vez disso, retorna-se a uma estética regrada, funcional, como se o filme se esforçasse em não desagradar ninguém.
No entanto, não se pode ignorar a coragem do discurso. Ainda Não É Amanhã aposta em um retrato afetivo e politizado da experiência do aborto no Brasil, sem recorrer a didatismos ou simplificações maniqueístas. Em paralelo às aulas de Direito que frequentamos com a protagonista, a narrativa insinua, com inteligência, as contradições entre discurso acadêmico e realidade. Janaína navega por sites clandestinos, busca informações por vias não oficiais e enfrenta, sozinha, o labirinto da ilegalidade — uma experiência compartilhada por tantas outras mulheres invisíveis.
O filme se ancora também numa representação rara do Brasil urbano periférico que escapa dos extremos — nem favela, nem cartão-postal. As casas são simples, os sonhos são palpáveis, e os dilemas, cotidianos. Há ali uma vida que pulsa, ainda que o filme insista em mantê-la sob rédea curta.
É justamente nesse controle excessivo que Ainda Não É Amanhã esbarra. Em sua tentativa de ser pedagógico, de não ser mal interpretado por uma audiência moralista, o filme sacrifica parte da complexidade emocional que poderia alçar o projeto a algo maior. Janaína vive uma revolução interna, mas essa revolução é representada como um processo asséptico, quase purificado. Como se, para validar a escolha da personagem, fosse necessário colocá-la num pedestal moral.
Mesmo assim, o filme é um gesto importante dentro da cinematografia brasileira recente ao tratar do aborto por um viés afetivo e íntimo, sem miséria, sem heroísmo. Um passo seguro, mesmo que tímido, rumo a uma representação mais plural das experiências femininas. E se falta risco estético, sobra intenção política. E isso, em tempos de retrocesso, já é muito.