Crítica | Caiam as Rosas Brancas

Caiam as Rosas Brancas (Argentina, Brasil e Espanha, 2025)
Título Original: ¡Caigan las rosas blancas!
Direção: Albertina Carri
Roteiro: Carolina Alamino, Albertina Carri e Augustín Godoy
Elenco principal: Rocío Zuviría, Mijal Katzowicz, Carolina Alamino e María Eugenia Marcet
Duração: 123 minutos
Distribuição brasileira: Boulevard Filmes

Um conto erótico sobre criação, desejo e ancestralidade

Existem filmes que se recusam a caber em rótulos. Caiam as Rosas Brancas, coprodução entre Brasil e Argentina é um desses casos: uma obra que se desdobra em múltiplas camadas, transitando por gêneros distintos (nem sempre com a fluidez necessária), assumindo riscos e apostando em uma liberdade estética de grandes desafios imagéticos – por vezes recompensadora, por vezes nem tanto.

Partimos de um ponto aparentemente simples: uma cineasta, Viole, embarca em uma viagem de Buenos Aires a São Paulo em busca de inspiração para seu próximo trabalho. Ao seu lado, três amigas — artistas, cúmplices, confidentes. O grupo é coeso desde o primeiro instante, e o filme dedica tempo para construir com delicadeza a intimidade que as une. A química entre as personagens é palpável, natural, e não apenas sustenta como também eleva a narrativa. A jornada geográfica serve como estrutura, mas o que realmente importa aqui é o deslocamento interno que cada uma atravessa.

O longa começa ancorado no drama pessoal e na estética do road movie: há diálogos contemplativos, paisagens que sugerem transformação e uma busca por algo ainda indefinido. Mas essa base mais clássica logo cede espaço a uma proposta muito mais ousada. O erotismo, que se insinua desde cedo, não surge como elemento gratuito ou apelativo. Pelo contrário: ele se constrói de maneira orgânica, como parte de um processo de redescoberta dos corpos e dos afetos. O desejo entre as mulheres do grupo — explorado com sensibilidade, sem pressa ou voyeurismo — torna-se linguagem, ponte entre o íntimo e o criativo.

A direção, ao perceber essa energia, entrega-se a um crescente experimentalismo. A montagem vai se tornando menos linear, os enquadramentos mais simbólicos, e a trilha sonora mergulha em paisagens sonoras que evocam estados de espírito em vez de emoções diretas. O segundo ato é quase uma transição ritualística: o real começa a se desfazer, dando lugar a imagens fragmentadas, sensoriais, quase alucinatórias. Essa virada não é gratuita — ela reflete uma ruptura interna das personagens, um desprendimento da lógica racional que abre espaço para o instintivo, o ancestral, o feminino em sua forma mais bruta e poética.

O erotismo então se mistura com o místico e o filme abraça um tom de realismo fantástico. A narrativa se fragmenta, mas se coesiona justamente por esse abandono das amarras tradicionais. O que se vê é quase uma performance coletiva, onde o corpo feminino é ao mesmo tempo meio e fim: veículo de prazer, de criação, de revolução. Não há concessões ao olhar masculino. O único homem citado na história funciona apenas como um McGuffin, um elemento externo sem importância própria, usado apenas para impulsionar a ação e, ironicamente, retirá-la de cena. Essa decisão narrativa é poderosa: ao deslocar o masculino da centralidade, o filme afirma um mundo regido pelas subjetividades femininas.

O clímax é ousado em forma e conteúdo. As protagonistas, num gesto quase ritual, se conectam à terra, ao sangue e à ancestralidade. Aqui, o longa propõe um paralelo desconcertante — mas instigante — entre a colonização européia das Américas e o mito dos vampiros. Ambos, sugere o roteiro, representam estruturas que se alimentam de corpos, que se perpetuam através da violência e do desejo de dominação. Essa leitura política, embutida em uma estética quase mística, transforma o filme em um híbrido raro: um conto erótico que também é manifesto anticolonial, ensaio sobre o feminino e exercício radical de linguagem cinematográfica.

Esteticamente, o filme impressiona. Há escolhas visuais marcantes — desde a fotografia granulada que remete ao cinema autoral latino-americano até cenas em câmera lenta que lembram os delírios de cineastas como Lucrecia Martel ou Vera Chytilová. A trilha, por sua vez, alterna momentos de silêncio contemplativo com explosões de sons orgânicos e dissonantes, que reforçam o estado emocional das personagens.

Essa ousadia, no entanto, pode afastar espectadores mais acostumados a estruturas tradicionais. Há momentos em que a narrativa parece se dissolver completamente, exigindo entrega total por parte do público. Mas para quem aceita o convite, o resultado é hipnótico. Estamos diante de uma obra que não pretende agradar a todos — e é justamente essa recusa que a torna tão interessante.

Em resumo, trata-se de um filme inquieto, provocador e absolutamente livre. Uma carta de amor ao feminino em suas múltiplas formas, ao desejo como motor criativo, e à experimentação como linguagem possível. Uma experiência que desafia e encanta — e que, como toda boa arte, merece ser revisitada.

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