Crítica | Glória! Acordes para a Liberdade

Glória! (Itália, Suíça, 2024)

Título Original: Gloria!
Direção: Margherita Vicario
Roteiro: Margherita Vicario e Anita Rivaroli
Elenco principal: Galatea Bellugi, Carlotta Gamba, Veronica Lucchesi, Maria Vittoria Dallasta, Sara Mafodda e Paolo Rossi
Duração: 106 minutos
Sinopse: No final do século XVIII, em Veneza, Teresa, uma jovem servente de um instituto feminino, une-se a um grupo de estudantes talentosas para desafiar as rígidas convenções do Antigo Regime.

A música não precisa de palavras para ser ouvida, e talvez seja exatamente por isso que Gloria! consiga ser mais eloquente quando abandona os diálogos e se rende ao poder sensorial da imagem e do som. Dirigido por Margherita Vicario, com roteiro co-assinado por Anita Rivaroli, o filme se ancora na sensibilidade de sua protagonista Teresa (Galatéa Bellugi), uma jovem órfã e muda que vive às margens da visibilidade em um convento veneziano do século XIX. Entre tarefas árduas e olhares que a ignoram, ela habita um espaço de silêncio que, aos poucos, revela-se cheio de música.

Talvez o maior mérito de Gloria! esteja justamente nessa imersão subjetiva. Ainda nos primeiros minutos, o cotidiano se transforma em uma sinfonia involuntária: o rangido de uma vassoura, o estalo da costura, até mesmo o gemido de dor de uma freira tornam-se parte de uma harmonia que só Teresa consegue escutar ou sentir. A câmera, cúmplice dessa sensibilidade, flutua livremente pelo espaço sempre que a protagonista se aproxima da música, transformando o filme numa espécie de musical interno e emocional que lembra, com ousadia, a abertura de Ama-Me Esta Noite (1932), de Rouben Mamoulian.

Mas essa liberdade expressiva encontra resistência. O convento Santo Inácio, onde Teresa vive, é um microcosmo de um mundo maior que silenciou mulheres durante séculos. Mesmo com uma orquestra composta por órfãs talentosas, a instituição só permite que sua música ecoe entre as paredes da missa dominical. Quando um pianoforte é doado por uma admiradora das internas, o instrumento, símbolo de potência sonora, é rapidamente transformado em ameaça. O som que liberta também é o som que assusta. E é nesse gesto que o filme mais se aproxima de sua denúncia: a música que emana das mulheres precisa ser domesticada, reduzida, vendida, silenciada.

Paolo Rossi, no papel do padre Perlina, interpreta com doses iguais de patetismo e sordidez o regente da orquestra, figura ambígua que, mesmo pressionado por suas próprias dívidas (inclusive emocionais), parece mais interessado em manter sua autoridade do que em realmente guiar as jovens. Seu arco é tanto um respiro cômico quanto uma peça de acusação, e essa duplicidade acaba por ecoar o tom geral do filme: Gloria! é leve e sombrio, sonhador e revoltado, lírico e indignado.

No entanto, é exatamente quando tenta dar conta de todos esses tons que o filme perde parte de sua força. Ao ampliar sua narrativa para incluir um romance trágico, um abuso sexual abafado por figuras de poder e um desfecho artificialmente redentor, a obra se afasta da coesão potente de seus melhores momentos. A tentativa de amarrar todas as tramas num final esperançoso, selado por uma carta mal inserida, parece uma traição à própria premissa, que grita por complexidade e não por resolução.

Ainda assim, Gloria! é um filme que acredita no poder da imagem, no gesto como linguagem e no som como libertação. Quando escolhe confiar na imaginação sonora de sua protagonista e na fluidez da mise-en-scène, o longa alcança um lirismo raro. É nesse estado de suspensão, entre a opressão de um mundo rígido e a beleza de uma mente que canta em silêncio, que Gloria! se aproxima daquilo que o cinema tem de mais vital: a capacidade de ouvir o que nunca foi dito.

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