Crítica | Mostra de SP | Manas

Manas (Brasil, 2024)

Título Original: Manas

Direção: Marianna Brennand Fortes

Roteiro: Camila Agustini, Carolina Benevides e Marianna Brennand Fortes

Elenco principal: Jamilli Correa, Fátima Macedo, Rômulo Braga, Dira Paes, Samira Eloá, Enzo Maia, Emily Pantoja e Gabriel Rodrigues

Duração: 101 minutos

Distribuição brasileira: Bretz Filmes

nEstreando na ficção, Mariana Brennand assina filme-denúncia naturalista que expõe os abusos infantis em uma comunidade ribeirinha, mantendo o foco na preservação das vítimas.

Crescendo nas margens da Ilha do Marajó, no Pará, com seus pais e três irmãos, Marcielle (Jamilli Correa) passa pelo processo de deixar de ser menina para se tornar mulher. Ela imagina seguir o mesmo caminho da irmã mais velha, Claudinha, partindo em uma das balsas da região com um homem que lhe ofereça a tão sonhada vida melhor. Entretanto, sua idealização logo se choca com a realidade, e ela se percebe presa em um sistema sexualmente abusivo dentro e fora de casa. Violada e inconformada, Cielle hesita entre fugir na primeira oportunidade ou confrontar a violência velada que também assombra outras mulheres da comunidade.

Imagem

Pouco antes de uma das exibições de Manas na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo deste ano, Mariana Brennand e a equipe do longa falaram sobre o denso e sensível processo de realizar este filme-denúncia. A ideia inicial era rodar um documentário que espelhasse nas telas o que a diretora e a equipe testemunharam no período em que acompanharam essas personagens para contar suas histórias. Contudo, o formato documental – até então o único explorado por Brennand – além de revelar a intimidade das garotas e mulheres abusadas, também as obrigaria a reviver seus traumas diante das câmeras. Pensando nisso, o projeto foi adaptado para um filme de ficção, baseado no material captado durante a pesquisa de campo. Como resultado, temos uma obra naturalista respeitosa e impressionante.

É até surpreendente que este seja o primeiro filme ficcional de Mariana Brennand. Manas chamou atenção no exterior — premiado como Melhor Direção na Jornada dos Autores do Festival de Veneza 2024 — e também no Brasil, onde ganhou o Prêmio da Crítica como Melhor Filme Nacional na 48ª Mostra SP. A diretora, que também colabora como roteirista e produtora do longa, utiliza o estilo naturalista para expressar a crueza narrativa e formal que já lhe é familiar nos documentários. A ausência de trilha sonora, a edição de som atenta aos ruídos do ambiente e as lentes de altíssima definição na fotografia criam uma atmosfera imersiva e assustadoramente veraz. O silêncio das noites em que Cielle é obrigada a dividir a cama com o pai é estarrecedor; o som do tiro e das respirações quando ela sai para caçar com ele pela primeira vez é nauseante, e as curtas, porém simbólicas, cenas em que a protagonista se afoga de olhos abertos no rio são sufocantes. O cinema naturalista de Brennand é uma experiência sensorial que confronta o espectador com um contexto social pungente.

Outro elemento característico do cinema naturalista presente em Manas é a escolha de atores não profissionais. Jamilli Correa nunca havia atuado antes, nem mesmo em uma peça escolar, mas dá vida a Marcielle com uma performance simples e dilacerante. Aliás, é até difícil caracterizar sua atuação como “performance”, dada a tamanha organicidade em cena. Mesmo ao lado de Dira Paes, renomada atriz do cinema brasileiro, Jamilli se destaca não pela técnica profissional como a de Paes, mas pela autenticidade com que encarna, na ficção, o sofrimento real de tantas meninas.

A dedicação técnica e estilística de Brennand envolve um enredo relativamente padrão dos filmes-denúncia. O teor dos abusos sexuais cometidos pelo pai contra a filha é inicialmente sugestivo e gradativamente revela um sistema ainda mais amplo. Cielle se vê coagida a aceitar a exploração sexual, como aconteceu com sua mãe, com sua irmã mais velha e, agora, com ela própria. As opções que restam são becos sem saída, retratando uma realidade angustiante para o espectador. É no desfecho, porém, que Manas adota uma liberdade poética e nos conduz a um ato final fatal e catártico: uma atitude desesperada da protagonista para proteger a irmã mais nova, ainda inocente, dos traumas e dores que ninguém a protegeu. Nesse ponto, o filme vai além da exposição de uma realidade brutal e expressa um protesto genuíno contra as circunstâncias que continuam a perpetuar essa violência.

Manas é um retrato verdadeiro e corajoso que denuncia crimes sem comprometer as vítimas e, com o poder do cinema, nos transporta para as margens fluviais da Ilha do Marajó para nos tornar testemunhas conscientes dessas discussões urgentes.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima