Sonhar com Leões (Brasil, Portugal, 2024)
Direção: Paolo Marinou-Blanco
Roteiro: Paolo Marinou-Blanco
Elenco principal: Denise Fraga, João Nunes Monteiro, Joana Ribeiro, Sandra Faleiro e Alexander Tuji Nam
Duração: 87 minutos
Distribuição brasileira: Pandora Filmes
Toda reflexão sobre a morte é uma reflexão sobre a vida?
Sonhar com Leões assume a difícil tarefa de falar sobre o tema mais obscuro da filosofia humana a partir de uma comédia. Como lidar com leveza e comicidade com uma narrativa em que a personagem principal está frente à morte iminente? O filme começa nos apresentando Gilda, interpretada por Denise Fraga em uma escolha incrivelmente acertada de elenco, pois fica difícil imaginar outra atriz no papel. Ela tem um câncer terminal e decidiu que vai tirar a própria vida antes de ficar cheia de sequelas – e antes que a doença o faça. Ficamos sabendo disso tudo logo nos primeiros minutos porque a personagem quebra a quarta parede e fala diretamente com o público para explicar suas decisões.

Ela faz uma visita à Joy Transition, uma empresa que se propõe a ajudar doentes terminais e suicidas que já tentaram realizar o ato e não conseguiram a… conseguir. Um comentário da personagem para o público que explica que há multinacionais para absolutamente tudo, inclusive para isso, nos deixa claro que o roteiro não fugirá de contextualizar dentro da nossa sociedade o absurdo proposto pela narrativa, reconhecendo o problema como algo social e não individual da personagem – e, portanto, passível de exploração financeira. Um destaque para o slogan da empresa: Nossa morte, nossa vida.
Parte do processo um tanto absurdo – como a própria premissa – que a empresa oferece, passa por os clientes formarem duplas que se apoiem durante a jornada. Gilda fica com Amadeu (João Nunes Monteiro, que se revela um ótimo ator ao lado de Denise), um jovem que viu os pais morrerem ainda criança, que já tentou tirar a própria vida algumas vezes e trabalha em uma funerária em uma tentativa de permanecer perto da morte, e que atualmente sofre com um tumor cerebral. No início, ela mantém a postura dura, mas aos poucos vai se abrindo para o menino e uma amizade vai surgindo entre os dois.
Em sua vida pessoal, Gilda chega a perder o marido, cansado de chegar em casa e dar de cara com a esposa em meio a mais uma tentativa de suicídio – que às vezes acaba botando a vida dele em risco também. Então Amadeu passa a ocupar um lugar importante na vida dessa imigrante brasileira que não conhece muita gente em Portugal, acaba de se divorciar e só tem mais um ano e meio de vida previsto, sem contar sua própria intenção de diminuir esse tempo.
É com surpreendente leveza que o filme aborda o desejo de Gilda de encerrar sua própria vida enquanto ainda tem controle sobre a decisão. Uma sequência que explora bem o humor negro do filme mostra as variadas tentativas de suicídio que a personagem já realizou. Ao mesmo tempo, há uma reflexão sobre a vontade dela de morrer. Ela quer morrer? Ou só tomou essa decisão pelo destino inevitável? Se não quer, como vai conseguir realizar o ato que vai contra o próprio instinto? Não valeria a pena se dar mais um tempinho de vida antes de partir?
O filme levanta muitas questões, que vão da vida pessoal de Gilda à questão social maior sobre a dificuldade que é viver no mundo de hoje, “fodido, mas maravilhoso” em suas próprias palavras. Há pequenos trechos (que têm origem em um curta que o diretor fez pouco antes do longa) em que Amadeu, durante seu trabalho na funerária, conversa com os defuntos sobre como é morrer e estar morto. Pode parecer muito prepotente, mas o roteiro nunca cai na armadilha das grandes respostas e consegue atravessar com uma excelência invejável a corda bamba que separa a prepotência do reducionismo simplista. É leve, sem deixar de abordar o tema com profundidade e respeito. Na coletiva com o Paolo e a Denise após o filme, eles comentaram que a história foi inspirada pela experiência do diretor com a perda de sua mãe e que houve uma grande preocupação com o respeito ao público durante as filmagens. É preciso levar em conta que, em um cinema, há pessoas que já passaram por tudo, inclusive pela perda de alguém próximo, então não dá para brincar com sentimentos tão sérios daqueles que pararam por algumas horas para assistir ao seu filme – e esse cuidado se reflete no resultado final.
Durante o curso proposto pela tal Joy Transition, em que as personagens aprendem infinitos modos de tirar a própria vida, vai ficando cada vez mais claro que até na morte o rico tem mais direitos. Alguns métodos são inacessíveis financeiramente para os clientes da empresa. Outros poderiam ser facilitados ou acelerados por um pagamento. Vemos Gilda e Amadeu embarcarem em algumas aventuras para tentar realizar algumas das técnicas, mas, por diferentes motivos, nada dá certo. Até que Gilda se cansa de tantas teorias e tentativas frustradas e vai direto ao ponto com Isa (a maravilhosamente cínica Joana Ribeiro), uma das coordenadoras do curso, e pergunta se não há alguém, algum médico ou profissional da saúde que seja pró-eutanásia e esteja disposto a facilitar a sua vida (risos) e a de Amadeu. É claro que há, mas não apenas custa, como envolve uma viagem internacional. É bastante irônico ver alguém que está indo morrer pensando em como juntar o dinheiro necessário para isso. Não há limites para o que você pode fazer, porque não há consequências. No pior dos casos, você consegue exatamente o que quer.
Em uma pequena virada, eles conseguem juntar o valor e partem no que deverá ser a última viagem de suas vidas. Com o decorrer da história, algumas coisas vão mudando sutilmente. É possível perceber, por exemplo, que o uso do recurso da quebra da quarta parede vai sumindo a partir de um certo momento. Que a relação entre essas duas pessoas que têm tão pouco a perder vai se intensificando e, com isso, o prazer em estar não apenas vivo, mas aproveitando o viver. Que a certeza de Gilda sobre a própria partida não se abala com isso, pois é algo maior, com o qual ela fez as pazes.
É difícil não se perguntar se veremos a personagem, enfim, partir ao final do filme. É estranho torcer para que ela consiga o que busca, mesmo que desejemos uma virada milagrosa – que só o cinema seria capaz de entregar. É prazeroso chegar ao final e perceber que o filme não se sabota e tem a coragem necessária para se manter fiel a si mesmo e à personagem.
Com um humor que funciona e arranca risadas do público em diversos momentos, reflexões sobre a morte e a vida (toda reflexão sobre uma é sobre a outra também?), sobre o controle que temos – ou talvez deveríamos ter o direito de ter – sobre as nossas e também sobre a ética da eutanásia, uma pitada importante de crítica social e um sensível clamor em prol da beleza de se estar vivo, Sonhar com Leões é uma das boas surpresas do ano. Um filme que chega com pouco alarde, mas deixa sua marca na cinematografia recente. Para a nossa felicidade, Paolo e Denise já demonstraram interesse em mais parcerias no futuro. Só nos resta esperar, enquanto há tempo.