Twin Peaks (EUA, 1990-1991)
Direção: David Lynch, Mark Frost
Roteiro: David Lynch, Mark Frost, Harley Peyton, Robert Engels, Barry Pullman, Tricia Brock, Scott Frost,
Jerry Stahl
Elenco: Kyle MacLachlan, Mädchen Amick, Sherilyn Fenn, Sheryl Lee, Ray Wise
Duração: 30 episódios (45 min cada)
Disponível em: Mubi
Assistir Twin Peaks é uma experiência que nos transporta para o início dos anos 90: a cada episódio, é possível imaginar aquelas cenas enigmáticas e aterrorizantes passando em uma antiga TV de tubo, iluminando as salas de estar e as mentes dos espectadores.

No início, aparenta ser só mais uma série de investigação policial sobre um crime brutal numa cidade pacata. Mas esse sucesso cult que revolucionou a televisão da época é um ensaio sobre a fronteira borrada que separa inocência e perversão.
Não à toa, Twin Peaks é uma cidadezinha fictícia que fica no norte dos Estados Unidos, divisa com o Canadá. Naquele lugar remoto, tudo parece perfeito até que o corpo de uma jovem é encontrado na beira do rio. Laura Palmer (Sheryl Lee), a menina loira e popular da escola, foi brutalmente assassinada.
Nesse momento, a inocência e pureza da cidade, personificada em Laura, está maculada e os cidadãos, horrorizados. Agora, cabe a Dale Cooper (Kyle MacLachlan), o agente carismático e místico do FBI, investigar o caso. E, ao fazer isso com toda sua benevolência, ele dá sequência a acontecimentos sinistros que revelam os podres daquele idílico município.
A revelação gradual de segredos obscuros faz Twin Peaks transitar entre um novelão e um thriller. Isso porque todos elementos característicos de uma de soap opera (as caricatas novelas dos Estados Unidos dos anos 1950), como atuações melodramáticas, reviravoltas inesperadas, suspense, comédia pastelão, triângulos amorosos, traições, mocinhas e vilões estão lá – mas com um propósito muito maior do que entreter.
David Lynch parece utilizar, com certa ironia, todos esses clichês (como na quantidade exagerada de donuts na delegacia, para citar um exemplo) para seduzir o público e, por meio disso, apresentar seu estilo surrealista, particular de sua filmografia, como em Eraserhead (1977) e Veludo Azul (1986). Na forma, ou na superfície, Twin Peaks é entretenimento puro; no conteúdo, nos faz encarar o submundo assustador do inconsciente coletivo.
Esse equilíbrio entre aparência e essência se manifesta na estética e no som. A fotografia impecável com tons de marrom amadeirado transmite uma atmosfera charmosa, rústica e instigante. Enquanto isso, a trilha sonora de Angelo Badalamenti, o elemento essencial que faz a série mais icônica, define o clima de cada cena, revelando as intenções e motivações dos personagens.
Entre os personagens há jovens atraentes, como Shelly (Mädchen Amick), Bobby (Dana Ashbrook), Donna (Lara Flynn Boyle), Audrey (Sherilyn Fenn), James (James Marshall), mas também FIGURAS excêntricas e caricatas, como o homem sem braço (Al Strobel), a mulher do tronco (Catherine E. Coulson) e tantos outros que surgem constante e subitamente.
A profusão dessas personalidades possibilita o desenvolvimento de múltiplas tramas e nos faz questionar a figura da vítima. O mistério de “Quem matou Laura Palmer?” rapidamente se transforma em “Quem realmente era Laura Palmer?” e o crime parece ser a última preocupação dos criadores, que aproveitam para lançar divagações sobre os mais diversos temas da sociedade.
A principal reflexão, penso eu, é a deturpação da inocência. Twin Peaks nos faz questionar o que é o bem e o mal, reconhecendo que a maldade também é parte dos instintos humanos – está sempre dentro de nós, e às vezes sobressai, nos fazendo cometer atrocidades. Esse é o principal legado da série, que rompe com a dualidade e confunde mocinhos e vilões, abrindo espaço para uma era de protagonistas anti-herói na TV, que viria a seguir, como em The Sopranos (1999), e muitas outras.
A quebra de paradigmas narrativos deixou perguntas sem respostas, rendendo infinitas interpretações e produções posteriores: dois filmes – Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992) e Twin Peaks: O Mistério (2014) –, uma terceira temporada da série (Twin Peaks: The Return) de 2017, podem ajudar a compreender o universo deturpado de Twin Peaks. No entanto, é possível que essas obras possam confundir ainda mais ao trazer nuances e novos mistérios.
Honestamente, parece inútil tentar desvendar todos os enigmas da obra, já que Lynch e Frost parecem focar mais na experiência visual, evocando uma resposta emocional e uma reflexão profunda sobre moralidade. Imagino que o que eles queriam era justamente confundir nossa expectativa e nos apresentar algo completamente diferente na forma de algo familiar (o formato novelesco da TV).
No entanto, por vezes, esse formato gera uma confusão generalizada: alguns pontos do enredo parecem aleatórios e abstratos demais. Já certas resoluções são tão mirabolantes que não convencem e acabam soando um tanto ridículas.
A falta de respostas pode angustiar e frustrar os espectadores que esperam histórias fechadas e com uma lição de moral mais clara. O último episódio, em especial, é bem contraditório, mas acredito que é aí que a série se revela e, assim, se destaca das demais.
Apesar de estar repleta de significados, Twin Peaks é menos sobre encontrar uma lógica e mais sobre se deixar levar pelo instinto. Assim como uma obra de arte ou um sonho, experiências de transformação profunda às vezes não precisam fazer sentido, apenas serem sentidas.