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Foto do escritorCarol Ballan

47a Mostra: Anatomia de Uma Queda, A Teoria Universal, Afire, A Besta e Robot Dreams

Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023, França)

Aviso: o filme contém gatilhos sobre saúde mental e depressão. É recomendada cautela ao assisti-lo.

As parcerias entre diretores e atores ou atrizes é muito comum. De Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio, passando por John Ford e John Wayne e chegando até casos de relacionamentos, como Tim Burton e Helena Bonham Carter. Quando existe uma boa relação criada a partir de uma obra de sucesso e o diretor tem um trabalho mais autoral, é comum que ele já planeje um próximo trabalho pensando nesse parceiro. E esse é o caso da parceria feminina entre Justine Triet e Sandra Hüller.



É perceptível que o papel foi feito sob medida para a atriz, sendo a sua atuação o ponto mais alto da obra. Ela interpreta Sandra, uma mulher que inicia o filme sendo entrevistada e que logo descobrimos que é uma autora que escreve livros que misturam sua vida com a ficção. A entrevista é interrompida pelo som alto de seu marido Samuel (Samuel Theis), e logo seu filho Daniel (Milo Machado Graner) sai para passear com o cachorro Snoop. Entendemos que Snoop é um cão-guia, que Daniel tem uma deficiência visual, e em meio a paisagens idílicas dos alpes franceses, a surpresa: ao voltar para casa, se depara com o pai morto do lado de fora da casa.


Apesar desse início de muito impacto, a obra que se segue é muito mais procedural sobre a investigação que ocorre após essa morte. Aos poucos, ela se fecha em duas possibilidades: suicídio ou homicídio. Não havendo nenhuma prova específica ou testemunha, a discussão se torna sobre o que é a verdade e como temos acesso a ela. Entre provas de que Sandra era uma esposa egoísta ou que Samuel se sentia culpado sobre o acidente do filho, resta a questão sobre o que é a justiça e qual é a verdade que ela busca para punir os criminosos. Há também um questionamento sobre como moldamos a percepção do mundo sobre quem somos através das máscaras sociais, processo que acontece para todas as personagens da obra.


Triet pode parecer ter uma direção minimalista, mas adiciona seus toques pessoais na narrativa. Os detalhes da misoginia no julgamento e a construção de uma personagem multifacetada são questões que raramente estariam sob controle de um homem. As cenas que tratam da incomunicabilidade do casal são tão complexas que só poderiam sair de uma relação de confiança entre a atriz principal e a diretora. Há ainda a atuação de Milo, que apesar de jovem tem uma performance comovente. É perceptível em seu corpo a mudança de quem precisou envelhecer anos em meses, como quem precisa encarar a realidade de que seus pais são, antes de tudo, seres humanos.


Há momentos em que se insiste excessivamente em alguma ideia do tribunal, o que poderia ser um pouco amenizado dada a longa duração do filme. Seu final, dado o começo e desenvolver impactantes e complexos, parece incompleto, o que cria uma sensação de que faltaria uma situação mais resolutiva. No entanto, ao compreender que essa é uma brincadeira da autora com as expectativas de seus espectadores, já profundamente conectados emocionalmente com a história, há uma sensação de que a diretora completou perfeitamente o que desejava.


Apesar do andamento propositalmente lento e claustrofóbico, a obra traz mais uma faceta da incomunicabilidade proposta pela Mostra deste ano. Não poderia ser um melhor filme de abertura.


A Teoria Universal (Tim Kröger, 2023, Alemanha, Áustria e Suíça)

Além da dificuldade na comunicação, um segundo que surge em muitas obras dos últimos anos é a possibilidade de realidades paralelas ou de multiversos. O tema inclusive não poderia estar mais em alta, principalmente por conta dos populares filmes de super-heróis que trouxeram essa temática dos quadrinhos, como toda a nova fase de filmes da Marvel. Mas A Teoria Universal acerta ao se afastar de toda essa roupagem moderna e criar uma obra que dialoga muito mais com um episódio de Além da Imaginação do que com Homem-Formiga e a Vespa.



Também nos Alpes europeus, a história se desloca para os anos 1960 e a Guerra Fria que assolava o continente. Johannes (Jan Bülow) é um estudante de física que deseja se tornar doutor, e vai a um congresso com seu orientador, Dr. Strathen (Hanns Zischler), pensando em desenvolver sua monografia. O orientador não gosta de seu tema, o congresso é cancelado, e no meio disso tudo, ele encontra com uma mulher com a qual parece ter alguma conexão, Karin (Olivia Ross). Talvez não seja a trama mais inovadora, mas a forma com a qual ela é conduzida que traz destaque à obra.


A estética é um dos elementos mais importantes, tanto ao falar sobre a sua fotografia quanto com a direção de arte. O preto e branco é trazido desde a segunda cena do filme, causando a sensação de estarmos lidando com histórias mais clássicas de ficção científica que certamente ativa as veias nostálgicas de quem aprecia o gênero. Além disso, ele dialoga com o cinema noir na medida em que tem a atmosfera de mistério e a busca pela mulher misteriosa. Mas talvez pelo diretor ter trabalhado diversas vezes no setor de fotografia, todos os enquadramentos parecem escolhidos a dedo para passar mensagens de forma discreta, sem usar por exemplo close ups para indicar um elemento importante. Juntando a paisagem natural com o uso de planos abertos sempre que possível, o contraste da grandeza das montanhas contra o tamanho dos seres humanos já funciona como um fator que causa a reflexão sobre nossa importância no universo.


É também difícil criar camadas de detalhes e figurinos quando se assume apenas as escalas de cinza e preto. Mesmo assim, boas escolhas de figurinos e objetos de cena criam um grande detalhamento do clima de ostentação desejado. A mistura de peças que originalmente devem ter tons mais contrastantes com diversas texturas ajuda a criar dimensão, não permitindo que a obra se torne tediosa.


No entanto, o filme facilmente cai na categoria de filme de nicho, justamente pelo fator da nostalgia que não funciona para quem não cresceu assistindo essas obras clássicas. Ainda que, de certa forma, seja contada uma história de amor, é necessário abrir a mente para chegar a essa camada, passando por tempestades, sumiços e perseguições que obviamente seriam resolvidas em dois minutos na vida real. Ou seja, é uma obra que gera reações mais afetadas, fugindo da neutralidade.


Afire (Christian Petzold, 2023, Alemanha)

Christian Petzold é um diretor querido de festivais, com obras muito bem recebidas pela crítica mesmo quando não tão bem recebidas pelo público. Suas obras raramente abordam temáticas leves, mas é a sua visão de mundo como diretor e roteirista que o levaram a este ponto de ter lançamentos esperados em festivais.



Em Afire, a trama inicial é muito mais simples do que dramas anteriores que incluíam violência doméstica ou o Holocausto. São apenas dois amigos viajando para a região do Oceano Báltico, um pretendendo terminar um rascunho de um livro (Leon, interpretado por Thomas Schubert) e o outro pensando em seu projeto de inscrição para um curso de Artes (Felix, interpretado por Langston Uibel). Tudo começa mal com o carro quebrando na estrada, mas apenas piora ao chegarem e descobrirem que já havia uma pessoa hospedada na casa: Nadja (Paula Beer), que no início do filme é apenas uma sombra pela residência mas que aos poucos se mostra uma mulher inteligente e gentil.


O que faz com que a obra se destaque é a construção de um personagem quase insuportável, mas que continua sendo aceito pelas pessoas ao seu redor, pelo diretor, e consequentemente pelos espectadores. Sua relação com o trabalho é tão perturbadora que qualquer pessoa que já se pegou protelando o trabalho e perdendo parte de sua vida no processo irá se reconhecer. Apesar de ser essa pessoa acomodada e inerte, ele incomoda mais pelo reflexo dos próprios espectadores nele do que em sua construção. E esse olhar que foca na humanidade ao invés de tentar julgar cada personagem se estende para toda a obra, criando uma reflexão sobre o papel de cada humano na construção de uma comunidade.


Todas as ações de cada um dos personagens acaba criando reações que são importantes para o final trágico da obra. O roteiro é belamente costurado para que essas relações sejam percebidas e sentidas por quem assiste. Do carro quebrado a uma conversa hostil na mesa, todas as cenas cumprem o objetivo do filme. Isso se alinha a uma edição que permite vermos as reações com precisão, mas sem se alongar infinitamente em cenas em que nada acontece.


É improvável que o espectador saia da sessão sem uma reação no mínimo filosófica sobre o que foi mostrado. E honestamente, é um filme que cria uma vontade de assistir tudo do diretor para poder traçar paralelos entre suas obras.



A Besta (Bertrand Bonello, 2023, França e Canadá)

Filmes de ficção científica que envolvem um futuro no qual seja possível se livrar de traumas ou sentimentos de maneira mais simples do que lidando com eles sempre me atraíram, justamente pela minha vontade de tomar o caminho mais curto. A proposta em A Besta é que todas as pessoas carregam traumas em seu DNA, e foi descoberta uma maneira de se livrar dele para seguir em uma vida sem emoções. Gabrielle (Léa Seydoux) quer fazer esse processo, mas encontra dificuldades quando encontra com Louis (George MacKay) em sua memória.



Com uma mistura de linhas do tempo ancoradas pelos costumes e roupas de cada época, aos poucos conseguimos entender o caráter cíclico que o filme deseja apresentar. Falas replicadas de diferentes formas, em diferentes formatos de relacionamentos, indicam como um sentimento de desejo inicial pode levar aos mais diversos caminhos. Entre personagens adoráveis e detestáveis, todos interpretados pelo mesmo casal, somos levados a essa grande viagem no tempo de modo reflexivo.


Novamente, cada segmento mostrado não é uma história extremamente inédita ou improvável de acontecer na vida real. O que prende a atenção do espectador e faz com que o filme permaneça com ele é a cola que gruda todas essas narrativas. O roteiro com jogos inteligentes, as atuações que chegam a ser desesperadamente engraçadas e a direção de arte fazem esse trabalho conjunto para que o espectador saia da sala completamente atordoado. Ainda que às vezes haja um exagero de repetições, que poderiam ser otimizadas dada a duração e impacto do filme, elas se justificam pelo final.


Há um jogo que ressoa em qualquer pessoa que sofra de ansiedade, o medo pavoroso que todas as encarnações de Gabrielle sentem e não conseguem nomear. Lidar com esse medo ancestral de maneira delicadamente surrealista e complexamente criativa é sinal de uma direção bastante amadurecida. E um bom sinal de que Bonello, com mais de 20 anos de carreira, seja capaz de surpreender e emocionar.


Robot Dreams (Pablo Berger, 2023, Espanha e França)


A animação é uma linguagem impressionante. E Robot Dreams consegue utilizar essa potência em seu grau mais requintado.



Sem nenhuma fala, uma história de amor e amizade é mostrada de maneira delicada, mas absolutamente sem sentimentalismo. Dog (um cachorro) se sente muito sozinho em uma Nova Iorque dos anos 1980. Então, vê uma propaganda na televisão de um robô, e logo o encomenda para lhe fazer companhia. Ao chegar, eles rapidamente se entendem, se fazem companhia e começam a compartilhar a vida. No entanto, em certo momento do longa-metragem, eles são separados por condições físicas - e o reencontro é impossível. O que sobra de uma amizade quando não temos mais o amigo por perto? Essa é a resposta maravilhosa que o filme traz para seu público, e que eu não estragaria explicando em texto.


A questão é que a animação é feita absolutamente sem nenhuma fala, utilizando apenas recursos visuais e a trilha sonora, que é muito presente e aparece como um elemento central da narrativa. Há algumas cenas excessivas em relação a alongar ações por tempo demais para a proposta do longa-metragem, mas é a sutileza ao contar a história que ganha o espectador.


Temos também a própria animação, com traços simples, mas muito colorida e detalhada. Há um limite no quão expressivos os personagens podem ser, e ao invés de tentar forçar a imaginação de quem assiste, eles simplesmente aceitam a linguagem e utilizam o exagero a seu favor. A comédia fica mais acessível a qualquer tipo de público, e as sutilezas ficam para a os sentimentos de quem assiste e se relaciona com o filme.


Apesar de não ser uma obra inovadora ou extremamente complexa, ela é uma pausa para relembrarmos o que há de bom no mundo. E abraçar aquele amigo que foi assistir conosco.


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