Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023, França)
Entre a dualidade de fato e narrativa, Justine Triet dirige drama de tribunal intimista e orgânico.
Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, Anatomia de Uma Queda cresceu aos olhos da crítica e do público. O filme acompanha os desdobramentos judiciais da improvável morte de Samuel (Samuel Theis) e os impactos na sua família quando sua esposa se torna a principal suspeita. A partir dessa premissa, poderíamos esperar um longa expositivo e cheio de rompantes produzido pelo circuito hollywoodiano, contudo é a direção minimalista e melancólica de Justine Triet que torna a obra um primor.
Apesar de extenso em demasia, o filme faz bom uso de seu desenvolvimento gradual ao brincar com a percepção do público e trazer detalhes decisivos sobre o que aconteceu aos poucos, alterando nosso julgamento a todo momento. Não sabemos como era a relação de Sandra (Sandra Hüller) e Samuel ou quem eles eram e tudo o que temos são as interpretações que fazemos do caso. É nesse aspecto jurídico do roteiro que uma das falas ditas no tribunal se encaixa perfeitamente: É difícil interpretar a intenção de uma pessoa quando você não a vê. Ver uma pessoa, nesse contexto, vai além de enxergá-la fisicamente, mas de compreender as motivações do indivíduo. Aqui Justine Triet usa frequentemente o uso de branco e vermelho - como o sangue e a neve ou o figurino dos advogados - para criar a semiótica em que o branco significa o fato puramente como é, e o vermelho como a interpretação intencional que damos a esse fato.
A atmosfera do longa também está pautada em subverter os clichês do gênero que apela para grandes plot twists ou um maniqueísmo barato - como nas séries Em Defesa de Jacob ou Amor e Morte, que são boas produções traídas por discursos rasos - para trazer uma identidade própria. Identidade essa que utiliza o melodrama como expoente do seu desenrolar. A cena catártica do briga entre o casal, um dia antes da morte de Samuel, evoca os conflitos matrimoniais complexos de História de um Casamento e a densidade emocional da direção de Ingmar Bergman em Cenas de um Casamento. Anatomia de uma Queda desenha todo o caso a partir de uma visão humanizada em que todos são vítimas e o único culpado é o desejo que temos de culpar alguém por algo.
O filme ganha potência ao focar menos na resolução do mistério e mais nas causas e consequências que um trauma como esse gera em todos os envolvidos. Nos conectamos ainda com a figura extintiva e sincera do cão guia de Daniel (Milo Machado), que comprova que todas as hipóteses e palavras dos advogados são bem menos eficazes que o silêncio e comportamento de Snoop. Em meio a isso tudo, o abraço entre Sandra e o mascote é mais forte que o bater do martelo do tribunal e traz um encerramento que nos deixa sem palavras.
Filme visto na 47 edição da Mostra SP
Dinheiro Fácil (Keith Gill, 2023, EUA)
Paul Dano se destaca com boa performance em longa de estilo norte-americano padrão.
Dinheiro Fácil conta a história real da inesperada ascensão das ações da Gamestop em Wall Street e como um grupo de investidores do Reddit, liderados por Keith Gill (Paul Dano), movimentaram o mercado financeiro durante o ano pandêmico do coronavírus. A premissa se encaixa nessa onda de longas hollywoodianos que contam a trajetória de microempreendedores, enfatizando o sonho americano com um estilo mais moderno. Não à toa Dinheiro Fácil tem o mesmo formato de BlackBerry (outro filme recente que foca em nerds despontando nos mercado de investimentos).
A direção de Craig Gillespie, conhecido por apostar em roteiros radicais, se poda frente a narrativa dessa nova obra. Aqui, diferentemente do que fez em Eu, Tonya e Cruella, o diretor aborda o tema de maneira superficial a fim de não entediar o espectador com informações técnicas e tornar a sessão mais atrativa com humor e dinamicidade. Entretanto, essa escolha faz com não compreendamos a fundo as consequências dos acontecimentos para o contexto real. Gillespie está mais preocupado em transformar o drama em um espetáculo do que tornar a história inchada de acontecimentos e personagens mais fluida para o público.
Paul Dano é certamente o ponto alto de Dinheiro Fácil. O ator, que está em uma ótima fase de sua carreira após suas performances em Batman e Os Fabelmans, rouba a cena com sua genialidade duvidosa e ousadia inexplicável de apostar na contracorrente de Wall Street. É um tipo de persona que já vimos antes, mas incorporada com a entrega de um grande ator que se sobressai em um filme genérico.
Portanto, Dinheiro Fácil apela para o lado pop do estilo de Craig Gillespie para ofuscar seu formato burocrático de dar vida nas telonas à histórias reais. O filme funciona como um algodão doce, gostoso e docinho, mas incapaz de matar sua fome por cinema.
Filme visto na 47 edição da Mostra SP
The Royal Hotel (Kitty Green, 2023, Austrália)
Em dobradinha com Julia Garner, Kitty Green abre mão de sua sutileza para ser mais incisiva.
Green fez sua estreia como diretora com A Assistente, drama intimista no qual debate as situações rotineiras do machismo velado da sociedade. Em The Royal Hotel ela retorna com um longa mais afirmativo sobre o mesmo tema. Se trata de duas amigas que vão para a Austrália em uma espécie de intercâmbio com trabalho de férias e se desiludem com a experiência ao se depararem com um ambiente hostil e agressivo para seu gênero.
O primeiro ato traz um contexto simples e ordinário no qual as violências contra a mulher e sua dignidade estão nos detalhes. O silêncio de Kitty Green comunica mais do que os diálogos triviais e o humor descompromissado relaxa o espectador enquanto a misoginia do ambiente o comprime discretamente. Contudo, no desenvolvimento da narrativa, The Royal Hotel passa a ser cada vez mais literal e repetitivo, girando em torno das mesmas situações de desconforto vividas pela dupla de protagonistas. É como se o roteiro se movesse sem avançar.
Fica perceptível o intuito da direção em ser mais direta e expositiva se inspirando em longas como o premiado Bela Vingança (um thriller pungente que traz discussões acerca dos abusos sexuais sofridos por mulheres). Entretanto, o filme só perde qualidade e gasta mais tempo esculachando a masculinidade tóxica queconhecemos ao invés de potencializar suas personagens com um arco narrativo melhor concatenado. A masculinidade exacerbada existe e precisa ser criticada, mas isso precisa ocorrer na mesma proporção em que projeta as figuras femininas como peças chaves no processo de sororidade.
É lamentável que The Royal Hotel seja o filme em que Kitty Green deixou de lado seus sussurros e olhares fatais para gritar frases piegas de revolta em um protesto tantas vezes ouvido e pouco escutado. Julia Garner está bem no papel, contudo, é enfraquecida pelo roteiro, que a torna mais delicada e menos voraz - como ela fez em Ozark como Ruth Langmore. Kitty Green era do menos é mais e agora se inclina para o mais é menos.
Filme visto na 47 edição da Mostra SP
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