Devagar (Marija Kavtaradze, 2023, Lituânia)
Carregado de slow cinema, romance cult aborda envolvimento líquido dos casais modernos.
Elena (Greta Grineviciūtė) conhece o tradutor Dovydas (Kęstutis Cicėnas) ao abrir uma aula de dança para pessoas surdas. Eles se interessaram um pelo outro de imediato, contudo Dovydas é assexual e ambos optaram por se conhecer lentamente, explorando as diversas camadas do relacionamento.
Romances clichês tendem a não tratar da zona cinzenta das relações amorosas para evitar a taciturnidade na narrativa. Devagar, longa lituano premiado no Festival de Sundance 2023, não só tange essa zona cinzenta, como submerge nela. Os protagonistas são indivíduos complexos em si e se mesclam em tons interessantes um com o outro. Elena é sensorial, vive a sinestesia das sensações humanas e dança no ritmo delas. Dovydas é estático, se comunica silenciosamente e traduz a melodia do amor em gestos. O namoro dos dois começa de forma tímida e desvia do comprometimento o tanto quanto pode para evitar rótulos ou invadir os limites que eles têm um com o outro. O problema de toda essa fluidez da direção é como ela conduz o enredo de forma desconexa e prejudica a conexão com a continuidade da narrativa.
Emergindo do melodrama, a parte técnica aposta na austeridade. A fotografia gera um acolhimento com tons pastéis e um filtro granulado que realça o amor a conta gotas desenvolvido entre o casal. A singelidade alcança desde o figurino e direção de arte até a direção e trilha sonora, que são esquecíveis, porém significantes. No ritmo do roteiro, o slow cinema desacelera tanto o espectador que chega a entediar por seu alongamento, se tornando menos concentrado. Essa escolha estilística impacta a densidade do longa, deixando-o líquido em sua temática e formato.
Por fim, Devagar pode ser em parte definido pela expressão popular devagar, quase parando e em parte pelo romantismo pós-moderno com uma abordagem visitada em A Pior Pessoa do Mundo.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
Pedágio (Carolina Markowicz, 2023, Brasil)
Após sucesso de Carvão, Carolina Markowicz retorna às telas com drama sobre amor condicional.
Quando uma milagrosa promessa de cura gay chega aos ouvidos de Suellen (Maeve Jinkings), ela usa seu trabalho como atendente no pedágio para ganhar dinheiro clandestinamente, tudo pela boa causa de salvar a masculinidade de seu filho Tiquinho (Kauan Alvarenga).
Pedágio se encaixa na categoria de filmes cercados de expectativa de determinado diretor/diretora após uma obra-prima. No caso, a nova obra de Carolina Markowicz depois do arrebatador Carvão. Aqui ela dirige com a mesma maestria do longa anterior, utilizando um visual que viola nossos olhos com o hiper-realismo e uma mise-en-scène cheia de significado. O colorido que acompanha o olhar de Tiquinho, a solução panfletária da cura gay compartilhada por Telma (Aline Marta) do andar subterrâneo (quase que como vindo do inferno) são exemplos de como o formalismo é impresso nas cenas. Entretanto, não é em sua formidável direção que Pedágio falha, mas em seu roteiro satírico que aborda a temática LGBTQIA + de forma reducionista. O humor dessensibiliza a delicadeza com que certas questões precisam ser tratadas para o público. A descrença da diretora em uma crença absurda tão palpável no contexto brasileiro leva ao erro de subestimar a agressividade que a cura gay traz para todos aqueles que ouvem falar dela.
A partir da hipocrisia da protagonista, o filme critica o falso moralismo da população brasileira e alfineta os cristãos de modo particular, representando todos dessa religião de maneira estereotipada e generalizada como praticantes do fanatismo religioso (algo reproduzido no cinema nacional com frequência como em Medusa e Deserto Particular). A performance de mulher trabalhadora e corruptível de Maeve Jinkings - já vista na sua primeira parceria com Markowicz - traz o afeto materno que Suellen tem pelo filho e a metáfora do pedágio como a condição da negligência da sexualidade dele para amá-lo. Com questões tão difíceis a serem abordadas, o roteiro se faz complexo, contudo pouco profundo no avanço dessas discussões. O sentimento de revolta despertado é extremamente incômodo e pouco produtivo.
Portanto, Pedágio traz uma moldura refinada com pinceladas simplórias no quadro do cinema.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP
Ervas Secas (Nuri Bilge Ceylan, 2023, Tuquia)
Destaque do cinema turco no Festival de Cannes 2023, Ervas Secas reflete sobre o cansaço de ter esperança.
Enquanto aguarda para ser transferido para Istambul, Samet (Deniz Celiloglu) é educador na escola pública de uma vila em Anatólia, lugar isolado e congelado pela neve. Ele suporta a rotina frígida e sem vida com resignação, até que é acusado de má conduta sexual com as alunas e passa por uma crise que o leva em uma jornada existencial.
Ervas Secas tem uma premissa básica parecida com o drama norueguês A Caça (ambos acompanham professores sendo acusados de um abuso que não cometeram). Entretanto, o filme turco segue uma direção completamente distinta ao questionar o papel do personagem no mundo e a maneira como o encara. O longa dá o pontapé inicial na quebra de confiança entre Samet e uma aluna querida, Sevim (Ece Bagci), para abordar questões profundas como solidariedade e esperança. O protagonista está desiludido com a humanidade e, por isso, passa a ser reativo. Contudo, sua reatividade retorna para ele mesmo em diálogos que degelam seu coração vagarosamente. Ao invés de focar no contexto do desentendimento, a narrativa analisa os conflitos motivacionais do protagonista de dentro para fora com debates políticos e éticos. O caminho percorrido pelo enredo nos guia para um desfecho no qual as ervas secas da região ressurgem frescas após serem soterradas pela neve fria. Samet aprende com a perenidade da quimera de Sevim e sai mais sábio do baque sentido em Anatólia para chegar até Istambul mais maduro.
A direção de Nuri Bilge Ceylan capta na fotografia o ambiente educacional claustrofóbico e mal iluminado de uma região assombrada pela repressão e traduz o vazio existencial no horizonte glacial. As fotografias tiradas pelos personagens durante o enredo servem como registro de seus sentimentos obtusos. O diretor ainda amplifica o frio como parte da construção não só dos cenários como também de sua essência e utiliza as personagens femininas Sevim e Nuray (Merve Dizdar) como elementos fundamentais da mudança de perspectiva em um lugar desfavorável para a vitalidade humana.
Ervas Secas deixa o público processando seu extenso e pungente roteiro quando os créditos sobem. Um filme espesso com muitos argumentos emblemáticos que alcançam a transmissão de (quase) todas as suas mensagens.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
Folhas de Outono (Aki Kaurismäki, 2023, Finlândia)
Nesse romance lacônico e fatalista, um casal cínico se apaixona e larga seus comportamentos viciosos para ficarem juntos.
Ansa (Alma Pöysti) é estoquista em um supermercado e Holappa (Jussi Vatanen) um metalúrgico de construção. Eles se conhecem por acaso e encontram um no outro o escape de seu cotidiano monótono. Contudo, os infortúnios da vida criam obstáculos que impedem que os dois se conheçam melhor.
Folhas de Outono é um filme finlandês despretensioso em seu estilo e premissa. Seus protagonistas são simples peças do sistema capitalista que trabalham para sobreviver e usam seu tempo livre de maneira enfadonha. Ansa tem o hábito de levar produtos vencidos do serviço para casa na tentativa de aproveitar o que será descartado. Um hábito peculiar de se contentar com sobras da existência. Já Holappa usa a autossabotagem do alcoolismo como fuga da realidade. Tudo é como é, até que o interesse mútuo traz um toque de cinema para a narrativa. Esse mesmo toque cinematográfico que une os personagens, também gera os desencontros trágicos que dão um tom fatalista, com rádios que só trazem mortes diárias de países em guerra e um formalismo narrativo mecânico representa um mundo apático.
Em contraste com esse fatalismo, a direção de arte e figurino trazem uma paleta colorida em uma fotografia viva e trilha sonora de músicas clássicas. Há algo agridoce na realização de Aki Kaurismäki. Ademais, Folhas de Outono ainda tem um charme do Realismo Poético Francês (movimento cinematográfico do período entre guerras que discutia a fantasia e desilusão social), com camadas revisionistas ao dar mais destaque para a mulher e suas condições para o amor e a inversão do fim pessimista por algo em aberto. O enredo traz experiências triviais que mudam a perspectiva do casal sobre seu relacionamento e se encerra em uma atmosfera harmoniosa.
Logo, Folhas de Outono compõe a categoria do cinema europeu de boa qualidade e enche as salas de cinema com seu belo desconstrutivismo.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
Tia Virgínia (Fabio Meira, 2023, Brasil)
Vera Holtz é um jarro sem par carismático nessa hilária comédia brasileira.
Virgínia não se casou, não teve filhos ou uma grande carreira e parece ter “ficado para titia”. Contudo, no dia de natal ela toma uma decisão que destranca a porta de uma vida livre.
Destaque do Festival de Gramado 2023, o filme cativa com um humor carregado de elegância e charme que destoa de comédias pastelão nacionais. Filmes como Minha Mãe é uma Peça ou Até que a Sorte Nos Separe são divertidíssimos e fazem sucesso pela identificação familiar que geram com o público, entretanto, não tem um requinte cinematográfico que os torne mais artísticos. Tia Virgínia se destaca por fazer exatamente isso. O diretor Fábio Meira se inspira em entrevistas feitas com suas tias e as vivências em família para conceber a obra de forma que imprima sua realidade e alcance as salas de cinema com risadas e reflexões sobre a vida. O longa fala da irmandade ácida e agridoce, das datas comemorativas cheias de alfinetadas e brigas por herança. Há leveza e classe em tudo que é abordado.
Ademais, quem brilha é Vera Holtz, que capta a essência de sua personagem. Virgínia é uma mulher insanamente alegre e comicamente amarga. Ela primeiro diz não para depois dizer sim, gosta de ouvir, mas também gosta de ser ouvida e é uma força da natureza decidida a recobrar o controle da própria história. A personagem, rica em seus trejeitos e expressões fora da curva, é apresentada consertando o relógio antigo do seu pai. A cena mostra que ainda é tempo de viver e ser feliz, sem mais negligenciar seus desejos ou seus direitos. Por isso, o desfecho nos guia para o dançante (e hilário) anúncio da venda da casa. O imóvel, tão cobiçado pelas irmãs, é deixado inteiramente para Virgínia, que o repassa para um comprador a fim de se mudar e começar uma nova fase longe dos arrependimentos, frustrações e traumas do passado. Ela está disposta a deixar aquele museu para trás e passear com suas mechas platinadas pelo mundo.
Tia Virgínia conta com um roteiro conciso e corriqueiro que se passa em um dia, o que permite uma liberdade criativa para brincar com os cenários e diálogos entre os personagens, Há excessos - como a subtrama com a empregada ou as cenas sem significado da matriarca - , porém isso nem de longe tirar o prazer de se sentar na cadeira e ver uma brasilidade tão orgânica na telona.
Filme visto na 47 edição da Mostra SP
Afire (Christian Petzold, 2023, Alemanha)
Como um suspiro profundo, Christian Petzold dirige um novo romance lírico.
Leon (Thomas Schubert) tem sua vida desorganizada em uma viagem de veraneio quando um incêndio florestal causa uma tragédia e muda sua forma de enxergar o mundo. Afire é um desses filmes difíceis de definir a sinopse porque utiliza uma linguagem mais abstrata que depende de sentidos e emoções mais do que de descrições narrativas. Petzold usa símbolos puros - como o mar, o fogo, a floresta e a luz do luar - para compor os versos da sua poética direção naturalista.
Somos colocados na visão desse líquido inflamável que são os sentimentos de Leon, um escritor estafado e exausto que está sempre preocupado com o trabalho. Ele é consumido por sua autocobrança de escrever um novo livro e, aos poucos, sua combustão emocional se materializa com a aproximação do incêndio florestal que queima aqueles que estão à sua volta. O seu exato contrário é a água, representado pelo mar da praia e personificado por Nadja (Paula Beer). O constante desacordo entre os dois por insatisfações da parte de Leon faz com que ele se sinta ameaçado ao mesmo tempo em que está se apaixonando por ela. Nadja está sempre sorrindo e desfilando despreocupadamente com seu belo vestido vermelho. Ela é tranquila e envolvente como um mar calmo e, diferente de Leon, se interessa pelos outros a sua volta e por suas histórias. Por meio dessa polarização, a obra nos oferece ar puro como se estivéssemos sufocados pela rigidez interna do protagonista.
Outrossim, Petzold constrói a essência do longa no movimento contra hitchcockiano - como feito em Phoenix, outro excelente filme do diretor. Ao mesmo tempo que reverencia Hitchcock e sua ênfase no olhar, o roteiro desconstrói as projeções masculinas em relação à personagem feminina. Nadja recusa Leon porque percebe que o olhar dele não pode a enxergar de fato. Ele só consegue ver a si mesmo. A mis-en-scène deixa isso claro quando a viagem se torna o novo manuscrito de Leon e a capa vem a ser a foto de Nadja de costas olhando para o mar. Não é possível fazer esse retrato íntimo da personagem porque o protagonista esteve apenas a observando de longe, mas não próximo o suficiente para encarar sua face.
O roteiro de Afire acompanha esse processo de olhar para o mar e correr dos incêndios. Conseguimos apagar o fogo (ou seja, escrever o livro), contudo não mergulhamos na água (vemos o amor, mas não o sentimos).
Filme visto na 47 edição da Mostra SP
Paraíso em Chamas (Mika Gustafson, 2023, Suécia, Itália, Dinamarca e Finlândia)
Fruto do cinema independente, esse longa sueco acompanha três irmãs que buscam em quem se espelhar.
Laura (Bianca Delbravo) lida com a ausência de seus pais enquanto cuida de suas duas irmãs mais novas, Mira (Dilvin Assad) e Steffi (Safira Mossberg). O trio leva uma rotina caótica e encontra em desconhecidos as referências de cuidado familiar que não tem em casa.
Paraíso em Chamas tem todas as características de um cinema independente. Baixo orçamento, pegada intimista e um roteiro que está menos preocupado em dar respostas e mais interessado em gerar reflexões no público. Sua melancolia se assemelha ao do drama argentino de amadurecimento Tarde Para Morrer Jovem e seu estilo naturalista lembra o aclamado O Projeto Flórida. A direção de Mika Gustafson é influenciada pelo cult contemporâneo a uma execução simples e poética. A movimentação inquieta da câmera e a trilha sonora pontual para os momentos de evolução da narrativa trazem autenticidade para uma produção que se inspira, mas não copia de outras produções do gênero.
O enredo foca no peso da responsabilidade sentida por Laura na tentativa de reestruturar sua família em frangalhos. Ela procura esconder das irmãs a realidade dura da vida sofrendo sozinha e invadindo casas como hobbie no seu tempo livre, como se estivesse procurando por um lar. Um conjunto de cenas que sintetiza a essência do roteiro é a brincadeira que uma amiga mais velha (que se torna a figura modelo para Laura) ensina à protagonista e essa passa para Mira e Mira a Steffi. Apesar de não gostarem no primeiro momento, todas as personagens reproduzem a pegadinha com alguém de uma geração mais nova. Pegadinha essa que envolve, de maneira tão sutil, a quebra de confiança que as três tiveram em relação aos pais e que sentem no romper da infância para o crescimento.
Dessa Forma, Paraíso em Chamas tem uma frequência própria que pode não agradar a todos por alguns excessos dispensáveis (como a ameaça da vinda da assistência social ou o certos diálogos que não fazem muito sentido), no entanto irá ganhar um grupo de fãs com sua atmosfera alternativa.
Filme visto na 47 edição da Mostra de SP
Viciados em Amor (Rebecca Miller, 2023, EUA)
Sem sacada no humor, She Came to Me é romance moderno vazio
Viciados em Amor, título traduzido do longa, ou She Came to Me no original, acompanha Steven (Peter Dinklage), um compositor de ópera que está tentando sair de um bloqueio criativo após sua última obra-prima. Sua inspiração volta quando ele conhece Katrina (Marisa Tomei), uma mulher em abstinência de atenção que fica obcecada por ele. O problema é que Steven é casado com Patrícia (Anne Hathaway), que também é sua terapeuta.
A premissa é intencionalmente confusa para levar seu roteiro inusitado a engrenar na comédia. Infelizmente, essa engrenagem não funciona e causa a sensação constante de que Viciados em Amor é uma daquelas piadas que não faz rir porque não tem graça. A produção tenta emplacar sua discussão sobre o romance moderno semelhante ao estilo de Modern Love (série antológica que aborda relações sociais de forma madura), enquanto evoca o tom cômico de Amor a Toda Prova (obra hilária que ganhou o público com seu carisma), contudo o filme erra a mira das duas referências e acaba oco e apático em sua execução. É possível compreender a ideia, mas fica claro que ela foi mal realizada e isso é o mais frustrante.
O enredo ainda conta a história paralela de um jovem casal que está vivendo o primeiro amor e teme pelo futuro que pode os separar. Aqui está a subtrama mais deslocada. Por se tratar de um longa com muitos personagens, seria necessário uma integralidade maior para costurar os acontecimentos e trazer coesão para a narrativa. Entretanto, isso não acontece e resulta em um desfecho extremamente insatisfatório e corrido que sabota nossa experiência. A direção de Rebecca Miller somada a uma edição incompreensível cola as cenas como um conjunto de emendas sobrepostas de maneira despropositada.
Viciados em Amor se encerra sem comunicar nada. Tem um grande elenco e uma premissa curiosa, mas não funciona como comédia, não funciona como romance e, portanto, não funciona como filme. É difícil falar dele porque não há nada para ser dito.
Filme visto na 47 edição da Mostra de SP
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