Dumb Money (Craig Gillespie, 2023, EUA)
Assim como foi dito no especial sobre o TIFF sobre filmes que tentam se enquadrar em uma categoria próxima a A Grande Aposta (Adam McKay,2023), Dumb Money se aproxima de tal estética. Também contando uma história que envolve o setor do mercado financeiro, mas agora através da conhecida história das ações da GameStop, empresa que estava em decadência e voltou a ser valorizada através de um fórum do Reddit.
Com mais complexidade do que isso, é adotado principalmente o ponto de vista de Keith Gill (Paul Dano), o homem que inicia o movimento de comprar ações ao perceber que os grandes fundos de investimento estavam vendendo considerando uma possível falência. Ele então inicia um movimento a partir de seus vídeos para que outras pessoas comprem tais ações, gerando uma pequena revolução do “dumb money”, como são considerados os investidores individuais.
Com atuações convincentes e um filme tecnicamente correto e com a edição ágil que se tornou comum para tratar assuntos ligados ao universo de finanças, a maior dificuldade da obra é a de explicar para o público os fatos e suas consequências, com a maior parte dos espectadores compreendendo que era uma luta de valores de uma pessoa vs. as grandes corporações, mas sem captar as nuances mais complexas. E se A Grande Aposta foi tão premiado por fazer isso bem, tal edição acaba sendo utilizada de maneira mais leviana.
Para quem compreende melhor o ato realizado por Gill e sua rebeldia e inteligência ao lutar contra o sistema, também é bastante visível como a narrativa é romantizada para parecer maior do que realmente é. Claro, foi um assunto relevante nos últimos anos, mas ele não afeta de maneira alguma uma ordem mais global do funcionamento do capital, sendo uma situação isolada e cujas consequências são pequenas. Há ainda certa ironia ao pensar que o filme de grande estúdio funciona para o mesmo sistema, e ao contar bem uma história desse teor alimenta o big money, enquanto Keith Gill sumiu da vida pública e não tem nem os direitos autorais da própria história.
Ou seja, um filme divertido para passar o tempo, mas que não passa na prova conceitual do que está representando.
Rodas e Eixo (Jumpei Matsumoto, 2023, Japão)
Quando pensamos em Georges Bataille, normalmente a primeira obra que vem a mente é A História do Olho, obra que trata uma crescente perversão acontecendo entre um casal de adolescentes em uma crescente que mistura sexo e violência com a criação decorrente de uma visão filosófica. No entanto, é a partir de seu livro seguinte, Madame Edwarda, que Jumpei Matsumoto tira sua inspiração. Mais complexo e ligando o acesso à deidade pelas transgressões.
Deslocado para uma Tokyo moderna, a dificuldade na comunicação e na criação de laços significativos é uma temática extremamente presente, e que reflete um dos problemas da vida nas cidades grandes. Inicia-se o filme com um jazz que acompanhará melancolicamente a vida dessas pessoas ao longo de toda a obra. Kimiko (Tsutsui Mariko) leva sua amiga Manami (Suzuki Uri) para uma casa noturna na qual é possível comprar a companhia de um homem que ficará na sua mesa, sendo a melhor companhia possível, o que é um fenômeno bastante japonês. Lá elas encontram Jun (Yano Masato), amigo de Kimiko que é frequentador do local e que ela desejava apresentar para a amiga. Eles rapidamente escolhem pela companhia de Seiya (Mizuishi Atomu), e se inicia uma noite artificialmente agradável.
Vamos aos poucos entender que Manami e Jun são pessoas muito parecidas, principalmente no que é referente às suas inseguranças e dificuldades de encontrar um eixo que guie sua vida. Jovens, com dinheiro para gastar e sem uma moral específica que os governe, sua vida hedonista vai levando cada dia de uma vez, com peças de teatro e jantares regados a álcool. Quando assistem juntos uma adaptação de Madame Edwarda no teatro, Manami se encanta com a figura deusa feminina e tenta se moldar para caber nesse papel.
Se inicia um triângulo não-amoroso entre Manami, Jun e Seiya que leva a uma das cenas de sexo mais desconfortáveis dos últimos anos, na qual todos tentam cumprir o papel que acreditam ser o seu, mas ninguém tem um minuto de relaxamento e prazer. Os dois endinheirados passam o filme tentando fazer com que Seiya se torne o seu eixo, enquanto o rapaz apenas segue se vendendo para conseguir o dinheiro que os outros possuem.
As atuações quase etéreas dos protagonistas e que revelam mais através dos gestos corporais do que pelas palavras é o que permite que acreditemos no que está sendo mostrado. A tristeza está em cada frame gravado, junto com a incomunicabilidade que parece ser o eixo central da mostra deste ano. Falamos em um mundo pós-Covid, no qual os relacionamentos voltam a ser possíveis, mas o filme traz o questionamento: como se relacionar com pessoas tão perdidas quanto você? Longe de trazer as respostas para a pergunta, ele nos deixa com um amargor de que nem todas as perguntas têm as respostas, e que nesse caso nos resta a arte para ajudar a lidar com o assunto.
Uma Vila Sem Filhos (Reza Jamali, 2022, Irã)
Pense em um cenário: uma vila rural no meio do nada, com belos campos verdes e um homem com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Percebendo que a fertilidade da vila está muito baixa, ele faz um filme que coloca a culpa dessa infertilidade nas mulheres ao seu redor. O filme fica pronto e as mulheres, para defender sua honra, batem nele e queimam o filme. Só que se passaram 20 anos deste incidente, e o cineasta Kazem (Behrouz Allahverdi Zadeh) quer recuperar o coração da sua ex-esposa, da qual já se divorciou três vezes, e tem a ideia de refazer o filme para mostrar que não há nada de errado com as mulheres.
Se a trama parece absurda, saiba que ela realmente é. Se junta a ele Moslem (Hamdollah Salimi), morador da vila que deseja aprender sobre direção e que promete ajudar a conseguir entrevistas com as mulheres da vila. E há também a Senhora Doutora (Maryam Momen), que realmente está investigando a razão desta baixa taxa de fertilidade.
A obra funciona muito bem como uma longa piada visual sobre a dificuldade em fazer cinema em locais com menos acesso ao audiovisual e sobre a fragilidade da masculinidade quando ligada à esterilidade. Com boa técnica, consegue fotografar uma região afastada de maneira que o espectador compreenda perfeitamente a sua dinâmica, e percebe-se que a direção é bastante esforçada na ambientação. Muitas imagens abertas e planos conjuntos de personagens ajudam a compreender o isolamento e a falta de privacidade existente.
O grande problema da obra está em seu roteiro, que apesar de ter boas piadas e demonstrar um humor único, não consegue desenvolver melhor nenhum dos personagens que apresenta. Assim, os vínculos formados com os espectadores não são suficientes para que a piada se sustente por toda a duração do longa-metragem, e em algum momento há o questionamento se o tempo de repetir situações não seria melhor utilizado aprofundando ao menos a personalidade do protagonista. Tratando do tema sensível da infertilidade, ele acaba não trazendo nenhuma leitura dramática sobre a situação, o que poderia criar novas dinâmicas para a obra se sustentar pelos 80 minutos.
Ele pode se tornar um filme de alívio entre toda a complexidade de longas da Mostra, mas raramente estará nas listas de melhor filme dos espectadores.
Vadio (Simão Cayatte, 2022, Portugal, Polônia e França)
Em seu longa-metragem de estreia, Simão Cayatte consegue recontar a já conhecida história da crise geracional europeia que passou por momentos de crise econômica com reflexos graves. Nele, o jovem André (Rúben Simões) é abandonado pelo pai com quem trabalhava na perfuração em busca de água ao invés de estudar. Sem confiança na instituição governamental, ele acaba se voltando à vizinha Sandra (Joana Santos) em busca de ajuda.
Se inicialmente a trama lembra A Mulher Ruiva de Orhan Pamuk, percebe-se logo que esta história tem mais pés no chão e trabalha com uma estética naturalista. Passada no Alentejo, a região mais rural de Portugal, ela também se afasta dos grandes centros urbanos justamente para retratar esses personagens à margem da sociedade europeia. Se para André é aparentemente mais óbvio o problema, para Sandra, que é professora, a situação é explicada através do jornal diegético que fala sobre a migração dos professores do país por conta da falta de emprego.
São esses detalhes de roteiro que deixam a obra mais interessante, ao invés de simplesmente educativa e maçante. A sensibilidade dos atores também auxilia o roteiro que diz muito através de poucas palavras, sendo o silêncio uma parte importante do desenvolvimento da trama. O foco do diretor é em criar complexidades psicológicas dentro dos personagens, ambos abandonados de certa forma. É o abandono que faz com que a narrativa se mova, mas em uma luta de indivíduo versus si mesmo, se afastando de um realismo social que já não faz sentido no continente europeu.
A delicadeza da obra ao tratar da temática da família e das bases que a constroem é essencial para criar uma universalidade para a história bastante local. E, novamente, a temática geral da incomunicabilidade mesmo em eras de comunicação facilitada retorna, dessa vez literalmente pela falta de palavras a serem ditas.
Agra (Kahu Behl, 2023, Índia e França)
Ao contrário da obra anterior, Agra é um filme sobre confinamento e a dificuldade de se tornar adulto em uma sociedade com poucas oportunidades econômicas. Confiando na casa da família como personagem e locação principal, o romance entre Guru (Mohit Agarwal) e Mala (Ruhani Sharma) se torna um problema quando o rapaz decide construir um terraço na casa da família para morar com ela. Sua mãe esperava poder utilizar o espaço para construir uma clínica de dentista para um primo, e então uma grande disputa familiar se inicia.
A obra se desenvolve criando um personagem complexo para Guru: um homem sexualmente repreendido, com nenhum tato para lidar com mulheres e que precisa entender o valor social de relacionamentos. E o diretor e ator acertam completamente nessa construção, pois a experiência feminina assistindo ao longa-metragem é extremamente desegradável. Ainda que normalmente se saia enfurecida da sala de cinema, a reflexão trazida em camadas da obra precisa ser destrinchada aos poucos para diminuir o rancor com o filme enquanto se entende essa proposição do diretor.
Isso se alinha ao confinamento espacial de uma Índia super-habitada e na qual não existe mais a possibilidade de se mover horizontalmente, apenas de forma vertical. A potência da obra aumenta a cada vez que uma nova camada detestável de um personagem se revela nessa busca pelo que existe de escasso.
É importante avisar para quem assistir que é uma obra com cenas bastante gráficas e violentas. Recomenda-se cautela.
A Armadilha (Nadejda Koseva, 2023, Bulgária e Alemanha)
Aviso: Este filme contém cenas de morte de animais. É recomendada cautela. Além disso, pela sessão em búlgaro com legendas em inglês, eu não consegui anotar os personagens e atores para dar os créditos. Assim que tiver essas informações, atualizarei a postagem.
Apesar de inicialmente parecer um típico filme europeu no qual nada acontece, A Armadilha traz um significado especial para qualquer pessoa que já parou para refletir sobre ética animal. Além disso, é criado um personagem com uma honestidade consigo mesmo que é rara de encontrar em uma leva de filmes nos quais até os heróis são recheados de defeitos.
Yoyo é este homem que, apesar dos defeitos, tem muita clareza de quem é e do impacto que quer causar na sociedade. Vivendo na Ilha dos Lobos, ele tem uma rotina de comunhão com a natureza, que envolve retirar os lixos deixados pelas pessoas da cidade, alimentar seus animais e passear com seu casal de gralhas. Essa harmonia se altera quando um javali selvagem é colocado em uma área perto de sua casa para ser caçado por um investidor estrangeiro, que deseja utilizar a região como depósito de lixo nuclear.
Didaticamente é dada uma aula sobre ecologia muito mais completa do que seria possível em uma aula de biologia. Da questão das espécies invasoras (os javalis e os próprios humanos), da importância de manter um equilíbrio. Mas ao mesmo tempo a atuação do personagem principal é muito humana e delicada, fugindo do estereótipo de senhor mau-humorado com a juventude. Nos momentos em que ele contracena com os estudantes da escola, ou com o filho da personagem ucraniana que busca abrigo no país, percebe-se também uma gentileza e uma vontade de mudar o mundo inspiradoras.
Ainda que ele não seja o filme com final feliz que uma utopia ecológica mereceria, ele tem um final que não nos deixa esquecer que ainda estamos falando, principalmente, de seres humanos. O realismo e brutalidade com as quais os assuntos políticos na Bulgária são tratados fazem um belo contraste com o verde da floresta, causando também a tensão necessária para o entretenimento.
Com um ritmo um pouco devagar, mas uma mensagem importante, é uma obra que merece atenção.
Excursão (Una Gunjak, 2023, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Sérvia, França, Noruega e Catar)
Excursão, em compensação, é um filme com uma temática bastante abordada nas produções deste ano, a consequência final de contar mentiras ou de fake news. Talvez influenciados por todo o cenário político internacional, foi possível acompanhar obras que tratam desse assunto desde a esfera mais pessoal até a realmente política. O indicado da Bósnia-Herzegovina para tentar concorrer ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira aborda o assunto através de uma garota (Iman, interpretada por Asja Zara Lagumdžija) que conta para os amigos que perdeu a sua virgindade em um jogo de verdade ou desafio.
Trazendo à tona um conservadorismo que tem estado em alta em diversos países, ele mostra como a realidade europeia não está distante da brasileira quando se trata da sexualidade de jovens mulheres. Ao mesmo tempo sendo colocadas como idealizadas pela pureza e seres sexualizados, é interessante como a mentalidade dos pais, que são parte integrante da história, se altera quando o assunto está mais longe ou mais próximo. O julgamento de suas próprias colegas de escola, que por vezes a acolhem e por vezes a culpam, como se ela não pudesse escolher sua vida sexual, também é sintomático de uma sociedade que não aceita a mulher como um ser com desejos próprios.
Ainda que seja uma temática já muito abordada, a diretora traz sua visão a partir de uma fotografia poética e que acompanha os picos de emoção de ser jovem. Com uma ótima interpretação de Asja, a possibilidade de ter diversas facetas e ainda poder se moldar enquanto adolescente é sempre presente na narrativa. Só que trazer essa realidade tão crua, sem o medo de causar polêmicas, é um grande mérito da diretora que disse em entrevistas justamente querer falar sobre esse momento de mudanças.
Há diversas outras discussões embutidas na história, mas que por vezes são abordadas tão superficialmente que não justificam seu local na trama. A diferença de classe entre a garota e a melhor amiga, por exemplo, é bem colocada, mas a relação com a colega que nasceu na Suíça é mais complexa para um espectador internacional. Aborda-se também um evento que ocorreu em uma viagem de escola, mas sem nunca explicá-lo realmente, o que é uma esperteza do roteiro.
Mesmo com a temática um pouco batida, ele traz pontos que são relevantes para uma discussão ampla.
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