13 Sentimentos (2024, Brasil)
Título Original: 13 Sentimentos
Direção: Daniel Ribeiro
Roteiro: Daniel Ribeiro e Rafael Gomes
Elenco principal: Artur Volpi, Michel Joelsas, Helena Albergaria, Igor Cosso, Marcos Oli, Juliana Gerais, Heron Leal
Distribuição brasileira: Vitrine Filmes
Duração: 100 minutos
Quando Daniel Ribeiro faz Hoje Eu Quero Voltar Sozinho em 2014, ele consegue bastante sucesso comercial e de crítica com a obra sobre o adolescente gay e deficiente visual passando pelo complexo momento da puberdade. Agora, quase 10 anos depois ele retorna ao cinema com uma obra que toca em assuntos parecidos: a reconexão do indivíduo consigo mesmo após o término de um relacionamento longo. Na nova obra, João (Artur Volpi) acaba de terminar o relacionamento de anos, e se encontra em uma situação de confusão e reflexão.
Entre conversas de aplicativos e pensamentos sobre seu passado, presente e futuro, conhecemos rapidamente o seu mundo: o café que gosta de ir com seus amigos, sua mãe, seu apartamento. E, como uma espectadora branca, de classe média e bissexual, é um espaço muito fácil e muito confortável para mim. Se por um lado, diferentemente de um Brasil mais conservador, eu não me choco com algumas cenas de sexo entre dois homens, também é difícil perceber como o retrato pintado em tela é excludente.
Quando se cria um microcosmo de um filme é necessário fazer recortes, e Daniel Ribeiro parece estar bem ciente dos seus. João é um personagem que dificilmente sai de sua zona de conforto, e seus dramas são um tanto elitizados. Por mais que se fale de uma luta para pagar as contas, em um estilo Carrie de Sex and the City, ele ainda consegue pagar por um apartamento sozinho e tomar seus infinitos cafés fora de casa. Ao mesmo tempo em que se cria um personagem bastante rico em detalhes e profundidade, ele é também um arquétipo dessa classe que representa. Assim, mesmo os conflitos que ele traz sobre a sexualização extrema entre homens gays, a dificuldade de viver no presente e os percalços da vida artística, é uma visão bastante privilegiada. E essa aura se estende para todos os personagens ao seu redor, que são apenas os coadjuvantes de sua vida.
Existe uma importância grande de tal obra no Brasil de 2024. Acabamos de sair de uma situação política que ameaçou a vida e a paz de praticamente todas as pessoas LGBTQIAPN+. Ter uma história que é quase uma narrativa de comédia romântica heterossexual em um contexto homossexual pode ser uma maneira de fazer parte da população nos enxergar com mais empatia. Mas as poucas oportunidades que poderiam aprofundar discussões ou trazer alguma transgressão são rapidamente abafadas, mantendo uma certa higiene em telas. Por um lado, é ótimo ver cenas de sexo gay bem gravadas, focadas na beleza e no prazer. Por outro, isso ajuda a alimentar uma expectativa irreal de romance, sexo e tudo no meio do caminho.
Algo inegável é o talento de Ribeiro como cineasta. Desde soluções criativas, como colocar atores recitando suas falas dos aplicativos de relacionamento ao invés do impessoal texto na tela, até a sua capacidade de pensar em cada plano e executá-lo muito bem, a forma não é um ponto a ser criticado.
Criar um cinema focado no público LGBQTIAPN+ poderia ser um exercício muito mais livre do que o que é apresentado. Mas a oportunidade é perdida em prol de um cinema que cria uma comunidade quase aspiracional, ao invés de real.
Mallandro: O Errado que Deu Certo (2024, Brasil)
Título Original: Mallandro: O Errado que Deu Certo
Direção: Marco Antonio de Carvalho
Roteiro: Marco Antonio de Carvalho, Sylvio Gonçalves e Sergio Mallandro
Elenco principal: Sergio Mallandro, Marianna Alexandre, Guilherme Garcia, Marino Rocha, André Mattos, Xuxa
Distribuição brasileira: Downtown Filmes
Duração: 90 minutos
A história de um artista que perde o momento de se atualizar e que acaba sofrendo as consequências com a perda de trabalhos é uma temática razoavelmente comum. Isso normalmente está ligado a grandes dramas, sendo a abordagem cômica de Mallandro absolutamente necessária, por conta do personagem principal. Assim, misturando a ficção e a realidade, e a comédia e o drama, se conta a história de um ícone da televisão em plena era do Tik Tok.
Para segurar uma série de esquetes é criado um roteiro que também se baseia na trajetória de Mallandro, do homem que está na beira da falência e precisa se redescobrir. Mais do que isso, ele está repensando o seu estilo de humor em um mundo que mudou desde os anos 1980, auge do seu sucesso. Com a ajuda de seus filhos Mila (Marianna Alexandre) e Lucca (Guilherme Garcia) ele tenta ultrapassar esse obstáculo.
Algo que Mallandro fala na coletiva de imprensa é certo: quando uma piada é engraçada, ela vai funcionar independentemente do seu público ou de quando ela é feita. Felizmente, a obra tem diversas dessas, e é impossível não rir seja por um humor corporal, pelos bordões do ator ou pelas piadas mais complexas. Essas cenas também são muito bem filmadas, com uma excelente fotografia realista, pensando em retratar o momento como um drama da vida real. Não há grandes estilizações, mas isso trabalha a favor do filme, colocando a personalidade no ponto central do filme. É difícil não ser nostálgico quando olhamos para todos os figurinos do Mallandro e percebemos o tamanho de sua carreira.
E isso não é utilizado para fazer com que o filme seja apenas sobre ele, perdendo a qualidade em qualquer outro sentido. Percebe-se que houve uma grande preocupação em contratar profissionais afiados para todas as equipes. Então, mais do que ser uma obra que simplesmente conta um stand up ficcionalizado, pensa-se em todo o formato audiovisual.
Mesmo com tal preocupação, existe um sentimentalismo piegas que é impossível ignorar no terceiro ato do filme. Sabendo que essa é a parte mais ficcionalizada da obra, é difícil aceitar que o grande trabalho de roteiro está em uma solução que utiliza uma criança doente para emocionar quando se tem uma história humana já muito complexa e que poderia emocionar por si só. O mesmo vale para as parcerias com marcas, que obviamente são necessárias para fazer o filme, mas que são colocadas muito escancaradamente na obra.
A obra é obviamente divertida, e deixa uma mensagem positiva dentro de um filme com entrega de um alto valor de produção. Muito melhor do que as expectativas, há um olhar sensível com um homem que retrata as muitas mudanças do nosso país. Uma grande surpresa para quem não é fã, e uma grande alegria para quem já o acompanha.
O Anel de Eva (2023, Brasil)
Título Original: O Anel de Eva
Direção: Duflair Barradas
Roteiro: Pedro Reinato e Eduardo Ribeiro
Elenco principal: Suzana Pires, Lis Luciddi, Odilon Wagner, Laíze Cãmara, Luciano Bortoluzzi e Sandro Lucose
Distribuição brasileira: Elo Studios
Duração: 90 minutos
Por sua extensão territorial gigantesca e seus 500 anos de história, felizmente existe uma infinidade de narrativas que podem ser contadas a partir de seus cidadãos. É interessante que uma obra que entrega um alto valor de produção seja feita sobre uma história tão incomum, e ao mesmo tempo tão representativa de um Brasil rural pouco mostrado em telas.
Eva (Suzana Pires) é uma mulher adulta que inicia o filme perdendo seu pai. Entre as comuns brigas familiares com seu irmão Marcelo (Luciano Bortoluzzi) sobre questões de herança e o restabelecimento de sua vida após tal perda, ela é surpreendida por mais um detalhe. Uma caixa que seu pai deixou, contendo um anel, uma foto de uma mulher e uma grande dúvida: seria essa a dica do pai adotivo sobre a sua mãe biológica?
É interessante que desde o primeiro momento Eva nos é apresentada como uma mulher centrada e bem resolvida. Sua primeira cena no filme é caçando um javali, demonstrando essa tranquilidade de quem já está acostumada com as partes menos belas da vida. Mas aos poucos também vamos entendendo que ela passa pelo drama de muitas mulheres de sua geração, de ser uma boa filha, uma boa tia, uma boa pessoa. Mas não saber exatamente quem é. E neste momento, o anel vindo do pai parece uma maneira de começar a organizar essa nova vida, resolvendo uma questão do passado para poder partir para o futuro.
Não é nenhuma surpresa para quem lê a sinopse oficial do filme que sua história vai se entrelaçar com o final do nazismo alemão e a vinda de oficiais para o Brasil, ainda que não se saibam os detalhes de como. Mas o filme consegue criar algumas linhas narrativas que ajudam a dar dimensão a uma complexidade que por vezes o próprio filme parece não se dar conta. E tudo isso por um roteiro que parece compreender bem o brasileiro conservador, dando-lhe voz apenas para criticá-lo em seguida.
Quando pensamos na obra em um nível mais superficial, ela parece uma espécie de thriller policial com alguns ganchos até fracos. Por exemplo, a coincidência da namorada da sobrinha ser especialista em nazismo é claramente boa demais para ser verdade. Mas isso cria uma abertura para discussões muito mais interessantes do que essa primeira camada. O mesmo acontece com todas as conversas muito pouco sutis sobre a pureza da raça dos cavalos da fazenda. É óbvio que ali temos um comportamento do conservadorismo em relação às raças, mas é menos óbvio como isso entra em um contexto geral maior de um Brasil inteiro. Somos um país criado a partir de miscigenação, mistura e inclusive violência sexual em nome disso. Então, pensar em um “cavalo raça-pura” aqui seria o mesmo que simplesmente enterrar a nossa própria história, comportamento esse que tradicionalmente temos como atitude oficial governamental.
Existe uma nuance nos diálogos que também engrandece a discussão quando falamos sobre as personagens LGBTQIAPN+ da história. A sobrinha Aurora (Laíze Cãmara) e a professora Isabella (Laís Luciddi) passam por episódios de LGBTfobia por conta de Marcelo. Mais do que isso, ele controla a filha por meio de bens, uma atitude bem clássica dessa classe alta em relação aos seus bens. Mas mesmo quando a sobrinha busca Eva buscando um acolhimento, a palavra utilizada pela tia ainda é significativa de um preconceito: a “escolha” que Aurora fez, como se a sexualidade fosse algo que se pensa e decide conscientemente. Mesmo para essa mulher amorosa e centrada, há o reverberar desse conservadorismo que só desaparecerá em muitas gerações.
Ainda que ele tenha muitas portas abertas que a direção talvez não consiga absorver, talvez por ser o primeiro filme de Barradas, é inegável que a obra tem um grande valor por explorar uma região e temática raramente exploradas. É um caso em que uma obra relativamente simples de assistir continua ecoando nos espectadores após o seu fim. Aguardamos as próximas obras para ver se o diretor conseguirá amadurecer os levantamentos feitos em seu filme de estreia.
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