Cento e Quatro (Jonathan Schörnig, 2023, Alemanha )
Com a literalidade do registro documental, Jonathan Schornig naufraga a linguagem cinematográfica.
À deriva no mar Mediterrênneo, um bote com cento e quatro lábios afunda enquanto espera pelo resgate da guarda costeira. Quando a equipe finalmente chega para salvá-los, eles sobem um a um no barco correndo sério risco de vida e esperam por dias em condições insalubres até receberem permissão para atracar em algum lugar. Cento e Quatro escolhe documentar essa história de sobrevivência do modo mais cru possível ao exibir simultaneamente as imagens das câmeras em uma grade de seis telas e não editar nenhum dos registros durante os noventa e três minutos do longa. A escolha estilística com pegada jornalística experimental nos submerge em um mar de tédio que afoga qualquer interesse que o espectador possa ter no caso real ao se ausentar de qualquer autoralidade.
Primeiro, é importante ressaltar que este é o primeiro trabalho da carreira de Jonathan Schornig como diretor de cinema. A maneira como documenta o evento deixa claro que ele tem o papel de informar o público sobre o que está acontecendo com aquelas pessoas a partir da filmagem do resgate da maneira mais verossímil possível, caracterizando um tom jornalístico ao invés de cinematográfico. Até aqui a escolha dele em gravar a reportagem sem cortes para que não, como massa informada, pudéssemos vivenciar a matéria de modo mais angustiante não tem problema algum. Contudo, a partir do momento em que Schornig decide transformar seu trabalho jornalÃstico em um conteúdo de audiovisual para ser assistido no cinema, se faz necessário que a linguagem seja adaptada para o formato da sétima arte, utilizando conceito de storytelling, decupagem e mise-en-scene para que um vínculo entre o espectador e as cento e quatro pessoas que sofreram com diversas adversidades naquele barco seja formado. Por essa adaptação do conteúdo para o meio não ocorrer, o diretor/jornalista afunda a experiência fílmica no mais profundo marasmo da alma.
Veja, a temática é de suma importância. São mais de uma centena de seres humanos que estão vivendo condições desumanas, quem não deveria se envolver emocionalmente com isso? Entretanto, o atrofiamento dos elementos narrativos - como personagens ou mesmo um enredo de ordem tradicional - e a ausência de técnicas sensoriais do cinema - como a montagem ou a trilha sonora - transformam um acontecimento cruel em fatos ordenadamente apáticos. No lugar dessa construção artística com fundo informativo, recebemos uma fragmentação confusa e poluída das cenas ao projetá-las todas juntas ininterruptamente e colocar um relógio cronometrando a duração logo acima delas. Parece que o longa convida o público a contar os minutos para Centro e Quatro acabar e esquecer que um dia o viu para todo o sempre. Ao representar um evento traumático, Jonathan Schornig nos traumatiza com sua incapacidade de diferenciar cinema de jornalismo e fazer cada um excelente à sua maneira.
Portanto, fica claro que uma reportagem interessante não necessariamente vai gerar um bom documentário, isso porque é necessário que a equipe responsável faça um processo de adaptabilidade detalhado e preciso para que o resultado seja eficaz a partir de um mesmo fato em meio diferentes. Cento e Quatro não só se nega a fazer isso, como se orgulha por não ter feito, como se fosse o Titanic desviando do iceberg, quando na verdade é uma canoa furada naufragada na lagoa.
Documentário assistido na 29a edição do festival É Tudo Verdade.
Tesouro Natterer (Renato Barbieri, 2023, Brasil)
Ao explorar as pesquisas do antropólogo Johann Natterer, o diretor Renato Barbieri busca a validação da cultura brasileira a partir de um olhar estrangeiro.
Membro da Expedição Austríaca que acompanhou a vinda da - até então - arquiduquesa Leopoldina ao Brasil, Johann Natterer passou dezoito anos realizando estudos etnográficos que resultaram em um acervo de mais de 50 mil objetos colecionados nas tribos originárias do país. Renato Barbieri abordou a temática da exploração em outros longas de sua filmografia - como Pureza e Servidão - e retorna ao circuito de festivais com Tesouro Natterer, um documentário que coloca nações como Áustria, participante do processo imperialista do século XIX, como a atual salvadora da cultura brasileira a partir da figura de Natterer.
A taxidermia é uma técnica científica na qual animais vertebrados são empalhados para fins de estudo ou exposições. Apesar de se aplicar diretamente a seres vivos e se tratar de um procedimento cuidadosamente específico, é possível comparar esse processo à representação de Barbieri das descobertas etnográficas de Natterer sobre os povos indígenas em seu novo filme. Tesouro Natterer retrata heroicamente a forma como o antropólogo se apropriou de diversos artigos culturais que dizem respeito à herança afetiva de povos originários brasileiros ao coletá-los, catalogá-los e exibí-los em museus como se fossem animais exóticos empalhados para curiosidade histórica europeia. A partir desse gancho, o cineasta exalta uma visão taxidérmica de nossa cultura de origem, transformando seu longa em uma mensagem de agradecimento ao pesquisador austríaco por ter preservado os artefatos que pertenciam às tribos exploradas durante a colonização. Para gabaritar sua visão do salvador branco, o roteiro recorre a pesquisadores e cientistas da área - tanto brasileiros, quanto internacionais - os entrevistando com profundidade, enquanto colocam os indígenas como coadjuvantes da própria narrativa.
Outrossim, não é apenas a angulação do documentário em Natterer como figura principal que soa como uma escolha problemática, mas também o retrato unidimensional do personagem-título, levando em conta unicamente suas contribuições para a etnografia ao representá-lo. Ao trazer registros dos diários de viagem e de documentos do período - evidenciados pelo narrador e artes conceituais informativas como artifícios protocolares para envolver o espectador - o enredo dá ênfase nos sofrimentos de Natterer para se adaptar ao Brasil durante seus anos de expedição, enquanto ignora a versão dos povos originários sobre isso tudo. Johann Natterer é performado como um supremacista branco em desconstrução de forma superficial e em um recorte histórico para celebrar os avanços nas ciências sociais. Dito isso, o filme encara a valorização da cultura brasileira de maneira preguiçosa ao colocar um único índigena - o qual mal é citado o nome ou história - em frente aos artefatos guardados na Áustria para observar o que é a herança cultural de seu povo ser propriedade legalizada de outros.
Assim, Tesouro Natterer encena a falsa descoberta europeia da riqueza dos povos colonizados com um verniz um pouco moderno, enquanto coloca o Brasil como responsável por seu próprio panorama atual degradante por não se valorizar tanto quanto as nações estrangeiras o valorizam. E, como de costume, o tesouro pode até ser nosso, mas continuará pertencendo a eles.
Documentário assistido na 29a edição do festival É Tudo Verdade.
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