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Foto do escritorJean Werneck

Críticas | 29ª É Tudo Verdade




O Cinema Por Dentro (Chad Freidrichs, 2023, EUA)


Nome Original: The Cinema Within

Duração: 93 minutos


Documentário americano encara o sistema de continuidade com uma abordagem empírica enquanto emociona com a magia do cinema. 


A compreensão da linguagem do cinema por meio da montagem e edição de imagens é natural e inerente ao espectador? É isso que uma pesquisadora da área busca experimentar ao viajar para uma remota região montanhosa da Turquia na qual os moradores nunca tiveram contato com o audiovisual. Como resultado temos um estudo aprofundado da percepção humana sobre a realidade. 


O Cinema Por Dentro é mais um dos selecionados documentários dirigidos por Chad Freidrichs, um cineasta de filmografia curta, mas com estilo bem definido. Sua pegada de conteúdo cientificista agora se concentra na ilusão da edição, dos cortes e cenas montadas estrategicamente para se conectar com o público. A partir de um storytelling detalhado somos convidados a conhecer como a arte da montagem se aprimorou dos primórdios do cinema até hoje. O que poderiam ser sequências de relatos técnicos carregados de dados se torna um gancho para entender o que torna obras tão aclamadas interativas a partir do métodos de ilusionismo das telonas. A direção de Freidrichs se torna metalinguística ao explicar do que faz uma complexa edição boa enquanto a executa. Um dos excelentes recursos disso é exemplificar com célebres cenas do cinema o que está sendo dissecado teoricamente pelos especialistas. 


Com esse viés de trazer a prática em contraponto à teoria, dois subnúcleos - o da pesquisadora na comunidade turca, que nunca ouviu falar de audiovisual, e um segundo de uma cientista que se especializou no ato involuntário de piscar - se tornam essenciais para colorir de humanidade um roteiro que poderia cair na monotonia de tecnicalidades . A construção dos conceitos por meio de respostas ao estudo feito por essas duas mulheres nos leva junto em cada passo da descoberta de um assunto que muitos não paramos para pensar. Passa a ser uma experiência epistemológica de como chegamos a interpretações de modo inconsciente, contudo premeditado, sobre o que estamos vendo em tela. E, mais profundamente, de como editamos a vida o tempo todo quando abrimos e fechamos os olhos. O olho está para a câmera assim como a piscada está para o corte na edição. Fascinante. O Cinema Por Dentro nos ajuda a compreender gradativamente a psicologia que correlaciona a vida com a sétima arte.


Nos minutos finais, a comunidade finalmente tem seu primeiro contato com filmes mais sofisticados e se maravilha com Charles Chaplin enquanto nós nos emocionamos nostalgicamente com o que nos fez nos apaixonar por cinema quando o vimos pela primeira vez. Desse modo o documentário vai além de uma narrativa etnográfica rica e nos toca ao expor o interior do cinema espelhada pelo nosso próprio interior. 



Corpo (Petra Seliskar, 2023, Eslovênia, Macedônia do Norte e Croácia)


Nome Original: Body

Duração: 92 minutos


Encontrando a essência do Female Gaze, Petra Seliskar dirige Corpo como quem ouve a história de uma amiga. 


Depois de descobrir uma série de doenças autoimunes raras, Bojan repensa a relação complexa que tem com seu próprio corpo. Ao encarar essas dificuldades, ela reflete sobre amor próprio e o processo da maternidade enquanto amadurece com o passar do tempo. Petra Seliskar tem uma virtude essencial para chegar ao resultado de Corpo: a paciência. A diretora rodou o documentário por um período de 20 anos até finalizar seu trabalho e o editou captando a alma de Bojan, que se tornou mais do que uma personagem em tela, mas uma amiga pela proximidade com a câmera. 



Essa proximidade que permite nossa identificação com a protagonista e seus dilemas não precisa ser verbalizada ou reforçada por um sentimentalismo formal porque a cineasta encontra maneiras singelas de consolidar essa relação. Entre essas maneiras, a câmera na mão, um recurso de movimentação que traz naturalidade ao olhar do espectador, é o que nos sensibiliza com o estado físico de Bojan a partir dos acontecimentos fragmentados dos últimos anos. Para preencher os vazios do que não é preenchido pelo formalismo, Petra utiliza os relatos da personagem como quem guia uma entrevista íntima e espontânea com uma conhecida de longa data. O conjunto do resultado a que se quer chegar é concatenado pelo roteiro, que está interessado em compreender a completude de quem Bojan é. Não é sobre a doença ou simplesmente sobre a cura, mas o indivíduo que lida com ela e suas particularidades como mulher. 


A aproximação com as individualidades de Bojan permite que a conheçamos além do processo de adoecimento, que fatalmente marcou sua história, mas também que nos atentemos para como ela lidou com as pressões internas e externas. O ganho de peso, sua relação com sua filha, a mudança na aparência já demandam um processamento árduo dela consigo mesma, contudo o julgamento das pessoas ao redor dela sobre sua estética se tornam mais um peso que ela precisa carregar. O Female Gaze, ou Olhar Feminino em tradução livre, de Petra Seliskar é fundamental para que o enredo não caia nos clichês da autoajuda e sim um estudo de personagem profundo e sincero que capta sua identidade. A exemplo da cena do mergulho durante o locução da descoberta do diagnóstico ou a bela cena de explicar o ciclo da vida a uma criança enquanto a vida ocorre ao redor dela, temos uma direção preocupada em não reduzir Bojan a nada. Petra quer expandir a personalidade dela ao documentar sua vida em Corpo. 


O documentário tem um problema de ritmo e vaga no marasmo em determinados trechos, entretanto sentimos sua sensibilidade em diversos momentos. Entre eles uma fala dita por Bojan: Eu amo meu corpo, mas ele estava me defendendo com tanta força que estava me machucando. Uma frase emblemática que se atém ao contexto e se conecta com inúmeras lutas internas do público que o assiste.

Inutensílios (Bruno Jorge, 2023, Brasil)


Nome Original: Inutensílios

Duração: 71 minutos


Em documentário sobre utilitarismo e arte, Bruno Jorge tem múltiplas funções e eleva o  cinema com todas. 


Retornando à pequena vila no interior de Minas Gerais onde cresceu, Bruno filma um documentário olhando com alteridade e nostalgia para sua história e como isso o formou como ser humano e cineasta. Emplacar um projeto em que você é diretor, roteirista, produtor, editor e diretor de fotografia não é para qualquer um, contudo Bruno Jorge não só assume essa multifuncionalidade a partir de um cinema independente como a usufrui para expressar sua alma como indivíduo em cada um desses elementos. Essa empreitada, ainda mais quando vinda de um diretor com uma filmografia curta, deixa o espectador com um desejo por mais quando os créditos sobem. 



Inutensílios está no grupo de obras que você dúvida se vai conseguir se aproximar emocionalmente dado o universo particular o qual ele representa. Entretanto, é a intimidade que não nos exclui, e sim nos acalenta quando sentamos em frente a tela e nos permitimos boiar no mundo do outro para que possamos mergulhar no nosso próprio. Esse processo de identificação universal com a narrativa é permitido pelo olhar etnográfico para qual Bruno nos convida. Compreender os distintos personagens dessa vila, que vão desde uma vizinha de longa data até um padre tomando posse ou um goleiro de futebol do time da região, nos atenta a perceber que por mais que o documentário seja autobiográfico, não se trata apenas da história do narrador - que tem a perspicaz ideia de trazer o off como se ouvíssemos seus pensamentos mais aleatórios -, mas de como ele se interessa em compartilhar a história de outros personagens que cruzam seu caminho a partir da sensibilidade que só a sétima arte pode trazer. As escolhas dos cortes de imagem e som, dos enquadramentos do grande plano geral até o plano detalhe e da trilha sonora reflexiva são primordiais para chegar a uma atmosfera orgânica. 


Ademais, frases alegóricas como: Ele (o documentário) seria um filme sem necessidade de existir, Ele não precisa.” ou “Quero uma utilidade que faz com que o valor das coisas esteja para além delas.”, impactam o público unidas a planos emblemáticos belos e uma fotografia em preto e branco arrebatadora. Fotografia essa que tem amplitude para ser o elemento técnico mais lírico do filme. Como enxergar o mundo nesse binarismo cromático e, através da arte e da cultura, perceber como as tonalidades cinzentas tornam tudo mais intenso e belo. Aliás, toda essa fuga do utilitarismo para que Inutensílios seja uma experiência e não um produto ganha camadas quando Jorge é corajoso o suficiente para expor parte de seu espírito ao público buscando não atribuir juízo de valor - assim como fez quando se atentou para seus personagens. Chegamos ao terceiro ato nos deparando com uma quebra da quarta perder emocional quando o diretor redireciona o olhar da câmera para si mesmo e revela a naturalidade da existência ordinária. Simples e suficiente. 


Desse modo, Inutensílios é uma pérola no fundo do mar paradisíaco que é o audiovisual brasileiro e sabe usar isso ao seu favor. É uma das inúmeras possibilidades sair da sala de cinema pensando na alienação do utilitarismo e no valor do tédio causado por esses, despretensiosos, objetos sem utilidade.




Um Filme Para Beatrice (Helena Solberg, 2023, Brasil)


Nome Original: Um Filme Para Beatrice

Duração: 78 minutos


Ao fazer uma retrospectiva de sua singular carreira, Helena Solberg cai na propagandismo e se esquece de fazer cinema. 


Depois de reencontrar uma cópia perdida de seu primeiro curta-metragem, a cineasta Helena Solberg se depara com os questionamentos de uma jornalista italiana acerca do avanço da luta de gênero no Brasil nos últimos 60 anos. Como responder uma pergunta socialmente complexa como essa? Não é simples. Por isso, Solberg roda Um Filme Para Beatrice documentando como mulheres de todo o país encaram a temática. Como resultado de uma narrativa que tenta englobar tantas narrativas de feminilidade e das novas definições de mulher, temos um produto ralo e pouco substancial com um desfecho pouco eloquente. 



Um aspecto interessante em Um Filme Para Beatrice é que, por ele ser protagonizado pela própria diretora, é perceptível o quanto Helena Solberg é cheia de personalidade e a importância disso  para que ela fosse considerada a única cineasta mulher em meio a tantos homens no prolífico movimento do Cinema Novo no Brasil. Viajamos pelo tempo acompanhando os cânones de sua filmografia  e como isso a formou não só como profissional, mas também como mulher. Aqui chegamos no ponto delicado. Solberg tenta digerir décadas de feminismo com a superficialidade de algumas frases de efeito e esquece-se de se atualizar conforme as novas gerações chegam. Adentrando a era do pós-modernismo, tudo é líquido e os diálogos da diretora com vários dos entrevistados ressaltam seu desejo de continuar militando pela causa feminista, mesmo que ela não tenha familiaridade alguma com esses novos anseios. As virtudes de Helena como realizadora e seu estilo são deixados completamente de lado em prol de propagar o conteúdo o qual ela tem quase certeza de que acredita. 


Ademais, a montagem ou os recortes sociais do roteiro do documentário falham em trazer uma tridimensionalidade para essa visão de mundo. Por conta do apego emocional ligado ao que o feminismo significou para sua juventude - algo completamente compreensível e muito particular para ser posto em julgamento em um texto crítico -, ela tem um olhar exclusivamente saudoso sobre o coletivo e dificuldades para construir uma percepção crítica e análise minuciosa de quais proporções, negativas ou positivas, o feminismo tem ganhado. Isso resulta em um cinema panfletário, beirando o propagandístico. Quanto mais os minutos de filme avançam, mais o discurso se torna segregado aos simpatizantes e menos dialoga com os discordantes. Isso deságua em contradições ideológicas. Ao mesmo tempo em que ela quer se desvincular dos estigmas do gênero, se alia a outros. Ao mesmo tempo que quer desfazer sua construção social, utiliza discursos que a reforçam para se relacionar com grupos minoritários. Ao mesmo tempo que refuta as arestas conservadoras que formam a sociedade, desenha as mesmas linhas com lápis diferentes. Solberg abre mão de sua especialidade - que é falar do universo feminino a partir da linguagem cinematográfica - para utilizar uma abordagem que não passa firmeza ao espectador. 


Portanto, Um Filme Para Beatrice já tem em seu título parte do problema. Quem é essa Beatrice que motivou o documentário? Porque para ela é importante como as mulheres avançaram no Brasil? Fica impossível perceber o íntimo das individualidades quando se traz jargões genéricos para as massas. Não existe mais o ideal de mulher, existem as mulheres como pluralidade, mas se corro para conhecer todas, verdadeiramente não conheço nenhuma. 


32 Sons (Sam Green, 2022, EUA)


Nome Original: 32 Sounds

Duração: 97 minutos


Em documentário sobre a universalidade do som, Sam Green leva o espectador a uma experiência auditiva única no cinema. 


Qual a diferença entre ouvir e escutar? É isso que 32 Sons propõe ao sonorizar desde ruídos da natureza até a melodia de músicas e levar o público a deixar de apenas ouvir os barulhos a sua volta e passar a escutar com atenção o ambiente, como uma análise sensorial e imersiva a ser desvendada. Sam Green é um documentarista nato. Em trabalhos anteriores - como Tempo de Protesto (2002) e A Thousand Thoughts (2018) - o diretor segue o mesmo formato, com uma narração do enredo com músicos performando uma trilha sonora ao fundo. Esse estilo tradicional de Green ganha uma nova dimensão em seu novo projeto, quando ele explora elementos da sétima arte em virtude da temática abordada. 


Entre esses elementos está o caráter interativo de 32 Sons, que se destaca em cenas como a que o narrador nos convida a abrir os ouvidos e fechar os olhos e focar exclusivamente nos sons e em suas características particulares ou na entusiasmada entrevista com Anne Lockwood, na qual ambos trocam conhecimento experimental da área. Essa decupagem espontânea e informal do documentário quebra o protocolo e nos aproxima da obra, permitindo um envolvimento mais palpável. Além disso, Green constrói um bom storytelling - principalmente no primeiro e segundo ato - ao vincular a presença dos sons ao cotidiano. Apesar da beleza em observar as virtudes ordinárias da sonoridade, é na valorização do silêncio e da edição de som no cinema como uma arte que o longa cresce. Essa curiosidade sobre como são produzidos os ruídos em estúdio para o audiovisual é o gancho que suspende o público no conteúdo do documentário. Assim como, a percepção de que não emitir barulhos intencionalmente em determinados momentos resulta no encontro com a profundidade do silêncio. 


Por outro lado, o filme também possui problemas estruturais. A começar pela confusa enumeração dos 32 sons que intitulam a obra e são mal especificados ao decorrer de seus noventa e cinco minutos de duração, acabando por soar desnecessários e despropositados no conjunto. Esse esqueleto narrativo mal executado prejudica o ritmo de 32 Sons no ato final e deixa escapar a atenção que havia conquistado o espectador em uma primeira abordagem criativa. Ao chegarmos próximo do fim, apenas desejamos que o número 32 chegue logo como se a experiência houvesse se tornado exaustiva e demasiadamente longa ao ser sistematizada. 


Por fim, 32 Sons consegue conciliar a robusta parte científica que o constitui com uma linguagem cinematográfica um tanto quanto dinâmica, contudo a falha está na inconstância dessa dinamicidade, que perde nossa escuta, por mais que detenha nossos ouvidos. 


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