A Paixão Segundo G.H. (2023, Brasil)
Nome Original: A Paixão Segundo G.H.
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Roteiro: Luiz Fernando Carvalho, Melina Dalboni
Elenco principal: Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa
Distribuição brasileira: Paris Filmes
Duração: 124 minutos
Texto por: Carol Ballan
Das grandes autoras brasileiras, talvez Clarice Lispector seja uma das menos adaptáveis ao audiovisual. Com romances que focam nas sensações internas das personagens e escritos muitas vezes em fluxos de consciência, é necessário um trabalho de edição e de roteiro muito minuciosos para que se adapte a autora ao audiovisual. A Paixão Segundo G.H. não é diferente, com um grande monólogo sobre uma experiência de uma mulher com uma barata que a faz repensar em todos os pactos sociais e nas simbologias envolvidas na feminilidade esperada. Compreender esse texto base é uma das peças-chave para poder entender a adaptação.
Contando com apenas duas atrizes, e apenas uma delas com falas, o filme se passa entre um monólogo interno e algumas poucas palavras de G.H.. Maria Fernanda Cândido tem uma atuação brilhante como protagonista, passando por todas as gamas e gradações da melancolia e até beirando a loucura que a personagem exige. Entre suas risadas e choros, é difícil não se relacionar com o seu devaneio sendo também uma mulher. Com muitos planos fechados focados no rosto da atriz, percebe-se uma sintonia entre diretor e atriz que permite que o filme funcione, porque de qualquer outra maneira seria muito fácil cair nos exageros de atuação.
Outra excelente ideia da adaptação é a utilização dos planos cinematográficos para retratar o sufocamento da personagem durante esse seu fluxo de pensamentos. Planos muito próximos da personagem e da barata contrastam com os planos médios que situam a sua localização dentro de um belo apartamento, mas com um excesso de informação. Isso ainda se relaciona com os pouquíssimos planos do exterior, com o horizonte e o mar. Cria-se uma situação que coloca o espectador em posição parecida à da personagem, e com isso se torna mais fácil criar empatia com ela.
Isso é combinado com uma direção de arte que consegue modelar cada plano para passar a impressão de complexidade ou simplicidade necessária. Do incrível detalhamento de época do apartamento até a caracterização de Maria Fernanda Cândido lembrando Clarice Lispector e seu delineado característico, a preocupação quadro a quadro transparece.
O texto, por sua vez, funciona como um fluxo quase poético, e leva os espectadores a um estado que parece de um feitiço. Mas, como muitas partes do texto parecem se repetir ou pelo menos terem uma ideia similar, mesmo que ele se perca um pouco nesse fluxo, a totalidade do sentido do texto continua tendo nexo. É quase esperado que o espectador se perca, assim como faz o leitor em uma obra da autora.
A obra cai em um formalismo que combina com o texto que adapta, mas que a torna menos palatável ao público que vai esperando alguma forma de entretenimento e mais difícil de digerir para alguém que não tenha nenhum contato anterior com Clarice Lispector. Ainda assim, ele é um trabalho de adaptação impressionante e que merece um destaque para quem admira o estilo do diretor ou da autora.
Texto por: Jean Werneck
Adaptando a emblemática obra de Clarice Lispector, Luiz Fernando Carvalho aposta no cinema experimental para dar forma ao abstrato.
Sozinha em seu bagunçado apartamento após a demissão da empregada, a escultora G.H. tem intensas crises existenciais ao adentrar o quarto de serviço e se deparar com uma barata. Matá-la ou não matá-la? Eis a questão. A Paixão Segundo G.H. é um clássico atemporal da literatura brasileira de uma dentre as escritoras mais respeitadas da história, Clarice Lispector. A ousadia do diretor Luiz Fernando Carvalho é transpor palavras tão enigmáticas para a tela, e isso resulta em um ensaio pungente interpretado pela brilhante Maria Fernanda Cândido.
Alguns vão chegar na sessão, assistir ao filme e depois pensar de forma pragmática: Era só ela matar a barata de vez, que dificuldade tem isso? É nesse ponto que o realizador compreende a profundidade da obra de Lispector e todo o subtexto que ela carrega. A literalidade dos fatos suprime a alma da arte, decapita a humanidade e torna estéril o que pode ser transformador se nos permitirmos sermos tocados, mesmo se for por uma socialite odiosa e uma barata asquerosa. A conexão do público com a protagonista é essencial, não só porque sua maior parte são diálogos dela com a câmera ou o ambiente, mas também por se tratar de uma mulher da alta sociedade entediada com sua rotina. Fica difícil de identificar com alguém tão incompreensível e detestável. É nessa brecha que Maria Fernanda Cândido entra e performa todas as versões - seja a debochada, a insana, a sedutora ou a serena - com maestria. Tantas camadas tornam o apartamento apertado para tamanha angústia um cubículo de claustrofobia emocional, enquanto explora o narcisismo embaçado pelos espelhos e obras de arte inertes dissipadas pela cobertura. Transbordante e avassalador.
Nesses aspectos, o conteúdo é suficientemente reflexivo para ser ruminado por um bom tempo e, quem sabe, algum dia ser digerido. Entretanto, o cineasta entende que precisa ir além se quiser se comunicar com a linguagem da sétima arte. Ele usa uma lente desfocada na qual dificilmente podemos ver o plano todo com clareza e abre o longa com o foco em uma migalha em detrimento da distorção do restante da realidade. A montagem também simula a vertigem de chegar a conclusões e desfazê-las rapidamente. Vamos e voltamos diversas vezes nessas cenas, mas uma em especial é mais frequente. As tripas da barata escorrendo lentamente após sua morte. Um plano-detalhe catártico, que conversa com o desejo de G.H. de deixar algum legado para o mundo enquanto se sente vazia com o que foi vivido até o presente. O dilema entre escolher a romantização da despedida pela morte e o amargor de deixar uma vida medíocre por sua própria essência para trás. Esses tons cósmicos ganham impacto com a trilha sonora, que investe em diversas composições - algumas famosas como Clair de Lune e outras menos conhecidas - indo do horror até a sacralidade da fé.
Em meio a controvérsias internas, A Paixão Segundo G.H. constrói uma narrativa centrada na personagem com universalidade - ao explorar medos, ansiedades e pânico - e também individualidade - ao tratar com sutileza o racismo, a traição e a maternidade. Sabemos as siglas do que nomeia esses sentimentos, mas não podemos dizê-lo por completo. Aqui está a sacada. Reconhecemos os sentimentos, contudo jamais poderíamos nomeá-los. Assistimos ao filme e não absorvemos o todo e tudo bem, porque assistir e reassistir, ler e reler, viver e reviver é a chave do aprofundamento do autoconhecimento por meio da experiência artística.