Existem alguns textos que são escritos muito facilmente. O novo filme do diretor que você gosta, um grande lançamento sobre o qual se ouvia falar há meses, uma grande descoberta que te deixou enlouquecida. Para outros, há um nível maior de trabalho envolvido: pesquisa, assistir filmes anteriores, conversar com pessoas. E para mim, poder escrever sobre o documentário que estreia hoje na Amazon Prime Video, Filho da Mãe, foi uma experiência completamente diferente, mais parecida com uma jornada do que necessariamente uma crítica.
Eu tenho muita dificuldade em lidar com a comoção pública, assim como em expressar meus sentimentos. Assim, quando três meses após o falecimento do meu pai por Covid-21 faleceu o ator Paulo Gustavo, eu tive muita dificuldade em adentrar o luto compartilhado pelo qual o país passou. Soma-se a isso o total desconhecimento sobre a sua obra: a falta de interesse e conexão com a comédia brasileira vai desde os tempos de Casseta & Planeta, então é simplesmente um gênero cujos filmes normalmente estão fora do meu interesse, e sobre os quais raramente me proponho a fazer uma crítica.
Para dar o primeiro passo em relação à desconstrução do meu preconceito foi necessária a aproximação através do documentário, gênero com o qual estou mais acostumada e costumo assistir e criticar com frequência. Saber que a sua última turnê de comédia, que visava homenagear a sua mãe e inspiração em vida, foi devidamente documentada em vídeo parece um sadismo do destino. Então, pensando como uma pessoa que também passou pelo trauma de perder alguém próximo em uma doença cruel, e naquele ponto, quase evitável por conta da vacinação que já se iniciara ao redor do mundo, topei o desafio de me educar para poder escrever um texto que naquela altura imaginava ser uma crítica mais formal.
Rapidamente pude ver os três filmes, amplamente distribuídos em plataformas de streaming. E assisti-los em ordem já ajuda a criar a noção do que as obras significaram. Inicialmente, uma personagem de uma peça que ganha maiores proporções e ganha um primeiro longa-metragem com menor orçamento e que faz bastante sucesso. A partir desse sucesso, é possível fazer os dois outros filmes que passam a ter mais investimento, o que é perceptível a partir do maior número de locações, personagens, e um maior investimento no roteiro, que perde um pouco o seu formato de esquetes para ganhar maior coesão. Aos poucos, também é perceptível uma militância latente do ator-estrela Paulo Gustavo em relação aos direitos LGBTQIA+. Claro, sempre com muitas piadas e bom-humor, mas chegando ao casamento realmente emocionante no terceiro filme.
Com o poder da perspectiva através da passagem do tempo e sabendo como seria o falecimento do ator, é impossível chegar ao final do último longa-metragem sem se emocionar e sem se apaixonar um pouquinho por aquele ator e personagem. É difícil não entender que há certa genialidade envolvida no processo de criação de obras que, por seu caráter de comédia, chegam às casas de brasileiros que talvez nunca tivessem uma fonte de informação humanizada sobre a homossexualidade como o que é mostrado na relação entre mãe e filho na obra. Compreender que Minha Mãe é Uma Peça 3 teve a maior audiência entre os longa-metragens exibidos na TV Globo em 2021, sendo visto por 40 milhões de pessoas - um acesso que quase nenhuma obra que não seja de um grande estúdio Hollywoodiano teria no país.
Ao chegar no documentário, já era impossível não admirar Paulo Gustavo. Talvez atrasada na comoção coletiva, mas finalmente compreendendo um luto que era tão parecido quanto aquele que passei com o falecimento do meu pai. E aí se tornou impossível criar uma crítica objetiva sobre o documentário, pois o assunto se tornou excessivamente pessoal.
É difícil pensar na dificuldade que família e amigos tiveram em construir esse filme, pois se às vezes caio no choro apenas ouvindo uma música inesperada, o trabalho das diretoras Susana Garcia (amiga) e Jú Amaral (irmã) é quase hercúleo: rever e reviver alguns dos momentos mais importantes da vida do amigo e irmão. Como dito na coletiva de imprensa realizada, a ideia foi de uma homenagem póstuma para dar ao público uma chance de conhecer todo esse material e rir e se emocionar mais uma vez. Como o ator tinha tanto amor e reconhecimento em relação ao seu público, seria justo permitir a exibição desse material feito, inicialmente, a eles. Esse material bruto gravado durante a turnê foi somado a imagens de arquivo que vão desde o início de sua carreira, e ainda entrevistas feitas com amigos e familiares próximos após seu falecimento.
Houve uma tentativa de deixar, a partir dessa homenagem, uma visão humanizada e honesta sobre o ator, mas com o mesmo olhar gentil que ele normalmente tinha com as pessoas ao seu redor. De momentos de intimidade e brincadeiras e imagens lindas de seu relacionamento familiar com a chegada dos filhos, mostrou-se também que nem tudo era tão simples quanto imaginado pelos fãs. Dos nervosismos em estreias, perfeccionismo com a experiência de quem assistiria e uma preocupação em criar vínculos entre a família tradicional brasileira e jovens LGBTQIA+, revela-se um aspecto vulnerável de sua personalidade e que, exatamente por mostrar sua humanidade, o torna ainda mais interessante.
Em uma crítica formal, agora seria o momento em que se falaria sobre o formato do documentário, que é excessivamente clássico e narrativo. Mas como criticar as diretoras por utilizarem a linguagem escolhida pelo ator por sua universalidade? Poderia se dizer que o personagem recebe apenas uma homenagem, sem explorar melhor a sua dualidade e dificuldades, por exemplo, ao criar essa conversa sobre homossexualidade a partir de um viés quase heternonormativo de formação de família, mas como negar que seu caminho talvez tenha mais impacto direto na vida de muitas pessoas do que aquele filme incrível que apenas 100 pessoas viram?
Volto novamente à questão do luto: como curar a cicatriz deixada por alguém que foi tão amado, e por tantas pessoas? Esse filme é a perfeita tentativa daqueles que foram mais próximos a ele de permitir ao público mais uma maneira de se despedir - algo muito raro quando se trata da morte.
Assim, a jornada em busca de Paulo Gustavo se tornou, para mim, uma grande reflexão sobre novas possibilidades de lidar com o luto. Talvez para dona Déa, ele esteja presente a cada vez que ela ver os netos sorrindo. Para as diretoras, é a pergunta “O que Paulo Gustavo diria disso?”, conforme dito na coletiva. Para o público, é a possibilidade de ver e rever todas as suas obras, e rir e se emocionar com o novo documentário. E, para mim, é poder me aproximar dos meus próprios sentimentos mesmo quando tenho um objetivo lógico em mente, como escrever uma crítica sobre um documentário.
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