Besouro Azul (Angel Manoel Soto, 2023)
Texto escrito pelo colaborador Jean Werneck, do Lente Cult
Entoando a cultura latina, novo filme da DC segue perfeito padrão do arquétipo do herói.
Um jovem desajeitado parece não ter nada de especial além de um belo coração. Até que um fato extraordinário o torna uma pessoa com super habilidades. Nessa jornada, ele luta contra o seu destino enquanto passa por um trauma familiar e descobre o amor. Onde já vimos isso?
Essa é a premissa básica de Besouro Azul. Claro, o filme tem seus pontos autênticos e traça uma identidade visual e cenas de ação próprias, mas sua essência está em reproduzir o repetido arco do herói que vem da epopeia, uma das primeiras formas de literatura da História. Aqui, especificamente, falamos de um escaravelho que dá poderes criativos e furtivos para Jamie Reyes, um jovem em busca de emprego para salvar sua família da insegurança financeira.
Paralelo a essa trajetória clássica, o longa trabalha uma lição sobre família ao falar das origens do herói e do suporte parental que ele tem. Infelizmente, por mais que haja a valorização da tradição mexicana, o humor beira o estereótipo em certos momentos. Como se todas as famílias mexicanas sempre falassem alto, fossem muito crédulas, espalhafatosas ou sentimentais. Além disso, o humor do filme também é construído em referências famosas dessa cultura. Citando de Chapolin Colorado à Maria Del Bairro, que de fato são divertidas, ele parece remeter a um México que parou no tempo em produções audiovisuais.
Apesar de tudo, Besouro Azul pode agradar muitos com seu clima descontraído e o carisma de Xolo Maridueña e Bruna Marquezine, que tem uma química belíssima em tela. A direção opta por seguir o roteiro de filmes da DC como manda o figurino e traz algumas técnicas de direção meio óbvias - como refletir o rosto de Jamie no quadro da Virgem Maria quando ele está prestes a ganhar superpoderes, para mostrar que ele seria a escolha divina. Isso é esperado por se tratar de um filme de um grande estúdio que mantém sua fórmula para manter seu público.
Por fim, o verdadeiro vilão do longa é o imperialismo e como ele ameaça pessoas em vulnerabilidade social, o que é muito interessante. Contudo, essa temática só é rascunhada, sem muito aprofundamento da temática e tudo fica mais no tema do que na discussão. Dessa forma, se faz um filme morno, que pode ser melhor do que alguns esperavam, mas também não é tudo que poderia ser.
A distribuição do filme no Brasil está sendo feita pela Warner Bros. Verifique a programação na sua cidade.
Fale Comigo (Danny Philippou e Michael Philippou, 2022)
Faz pouco tempo que em uma crítica publicada neste site sobre Ursinho Pooh: Mel e Sangue, eu fiz a defesa do filme de horror como uma das maiores possibilidades para que sucessos de baixo orçamento cheguem a uma audiência global. Porém, se naquela ocasião eu estava utilizando a informação para questionar a capacidade dos realizadores, na obra dos irmãos Philippou o princípio se mostra perfeitamente real. Com apenas 30 anos, a maior parte de sua experiência vem de 10 anos de trabalho no canal de Youtube RackaRacka, onde produziam filmes de diferentes gêneros. Então, pelo que contam em entrevistas, ao trabalharem com Jennifer Kent em O Babadook (2014) eles perceberam a paixão e empenho que a diretora tinha com sua obra, e partiram para o seu próprio longa-metragem.
São estes encontros felizes do cinema que o fazem uma arte tão intensa, com comunicação entre obras, diretores e até conceitos. O roteiro é relativamente simples: um grupo de jovens descobre uma mão que os torna capazes de se comunicar com os mortos. Então, no aniversário de morte da mãe de Mia (Sophie Wilde), ela e seus amigos decidem participar de uma sessão - mas isso obviamente sai de controle. Como em muitos dos bons filmes de terror, é a execução o elemento que torna a obra surpreendente. Ainda que o filme tenha um terceiro ato um pouco decepcionante, que para não dar spoilers, deixa o espectador no escuro sobre questões levantadas anteriormente na obra, o seu uso dos recursos é excelente.
Os diretores, muito provavelmente pela experiência com o Youtube, conseguem compreender quais são os momentos em que devem trabalhar o suspense através do jogo de câmeras, de usar a imagem com efeitos especiais, e através da montagem. Todas as técnicas são utilizadas em equilíbrio, fazendo com que espectadores tenham uma boa experiência de terror e fiquem realmente assustados com o desenrolar da trama. Algumas movimentações de câmera, como a que ocorre quando ocorrem as possessões, são pensadas para trazer o elemento de estranheza necessário para a situação sem a necessidade de criar muitos efeitos, por exemplo. O mesmo ocorre com a edição no ritmo da música que acontece no segundo ato da obra, mas desta vez em um sentido de aliviar o horror. A atuação de Sophie Wilde, que debutou nesta obra, também é um elemento essencial para o sucesso, conseguindo passar da doçura para o absolutamente assustador - literalmente - em um piscar de olhos.
Desenha-se uma obra que fala com o público geral sem perder as oportunidades de falar também com o público cinéfilo. E, como bom horror, ele aproveita a fachada sobrenatural para trabalhar a temática da dificuldade no luto e nas relações de família. Exatamente por essa facilidade de transitar entre cenas alegres e extremamente pesadas que ele assombra a plateia. E as poucas cenas em que ele usa os efeitos especiais, eles têm uma execução impressionante e aflitiva, sendo um dos únicos pontos complicados para quem não tolera uma dose de gore.
A A24 está em alguns de seus melhores momentos, e há tempos uma produtora não se tornava quase um sinônimo de qualidade. Excelente trabalho, e seguiremos assistindo à provável continuação do filme.
A distribuição do filme no Brasil está sendo feita pela Diamond Films. Verifique a programação na sua cidade.
Passagens (Ira Sachs, 2023)
Passagens tem uma qualidade rara, mas cada vez mais explorada pelo cinema, de mostrar um personagem com características detestáveis, colocar situações que potencialmente poderiam mudar a sua atitude perante a vida, e mostrar que seu problema estrutural é maior do que ele ser uma vítima das situações. Assim que conhecemos o casal Tomas (Franz Rogowski) e Martin (Ben Whishaw), nas primeiras cenas do longa, fica clara a dinâmica tóxica de seu relacionamento. Quando Agathe (Adèle Exarchopoulos) é levada para essa estrutura já deteriorada, é claro que esses problemas extravasam e criam uma situação ainda mais complexa.
É difícil não comparar a obra a Tár (Todd Field, 2023), dado o estudo de uma personagem autocentrada e que não cria laços empáticos o suficiente para perceber a reação de suas atitudes na vida de outras pessoas. A grande diferença entre as obras é a dimensão, com Tár criando uma saga de 2:38h que se passa em diversos países e abordando a temática do machismo mais do que a pauta lgbtqia+, e a abordagem de Sachs sendo mais sensível e prática, com sua 1:31h de duração e se passando em pouquíssimas locações. Claro, isso também é uma questão de orçamento, mas a eficiência de recursos não pode ser desprezada.
O roteiro é essencial na criação de Tomas, com a personagem já sendo apresentada como o diretor de cinema com um perfeccionismo negativo e completamente sem educação para falar com seus atores. Ele que cria esse universo que assistimos, no qual nada importa tanto quanto os sentimentos do protagonista. Assim, por mais que haja uma curiosidade como espectadora para saber mais sobre a vida de Martin e de Agathe, aos poucos se percebe que a obra mostrará apenas aquilo que é pertinente para a visão de mundo pouco profunda de Tomas.
A atuação de Franz Rogowski é o fio condutor necessário para que o drama funcione, com seus trejeitos e olhares transmitindo o elemento que leva os seus amantes em sua direção, e as poucas demonstrações de fragilidade transparecendo o quanto ele é imaturo internamente, com a necessidade da validação externa. Felizmente, tanto Ben Whishaw quanto Adèle Exarchopoulos estão à altura dessa boa performance e não são engolidos por ela ao longo da obra, se tornando os contrapontos necessários para que o espectador se mantenha interessado.
E, apesar de isso tornar a classificação indicativa do filme mais elevada, as cenas de sexo são necessárias para explicar ainda mais essa dinâmica de poder entre personagens. Neste sentido, o diretor consegue encontrar o difícil equilíbrio entre o sexy e o sexualizado, não sendo degradantes para nenhum dos atores. É através delas que se consegue perceber a paixão e manipulação de Tomas de maneira concreta, e cria-se essa camada extra.
A escolha por manter a história em uma situação razoavelmente realística, sem pessoas bilionárias ou extremamente famosas, faz com que, novamente, o espectador se aproxime da trama por reconhecer traços de suas próprias relações. Ao sair do cinema e conversar com colegas sobre a obra, conclui-se que todos conhecem alguma situação minimamente parecida. E a reflexão sobre porque as pessoas continuam se relacionando com egocêntricos, acreditando na necessidade que eles demonstram de sua companhia e apoio quando se vêem sozinhos, é algo que qualquer pessoa que já passou por uma relação abusiva irá compreender e apreciar.
Sim, é uma obra para um público específico, mas que qualquer pessoa que não seja lgbtqia+fóbica conseguirá transpor para a sua realidade. Especialmente divertida e desesperadora para quem já trabalhou dentro de filmes e conhece o mercado do cinema, este é um filme que certamente te acompanhará mesmo após a saída da sala de cinema.
A distribuição do filme no Brasil está sendo feita pela O2 Play em parceria com a Mubi. Verifique a programação na sua cidade.
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