Não Abra! (Bishal Dutta, 2023)
Texto por: Carol Ballan
Considerando que a maior parte do cinema comercial é voltado para um mercado pautado por Hollywood, é comum que as pautas presentes nesse país sejam aquelas mais apresentadas nos filmes que estreiam nos cinemas. Claro, isso tem uma variação com o tempo, como em momentos em que pautas raciais, de gênero ou sexualidade estão mais em alta, mas pouco se sai deste núcleo - que mesmo em cinemas estrangeiros, acaba sendo americanizado. O que Não Abra! tem de melhor é poder acrescentar um pouco da mitologia hindu como parte desse sistema, ainda mais considerando a representatividade de indianos crescente nas mídias.
O conceito parece ressonante com Deuses Americanos, de Neil Gaiman, no qual os imigrantes, ao viajar pelo oceano, acabam levando junto seus deuses por conta da força de sua fé. Só que nesse caso eles levam uma entidade quase esquecida.
A cena inicial do longa-metragem é interessante, com Sam (Megan Suri) tendo sua vida adolescente normal até ser confrontada pela professora Joyce (Betty Gabriel) sobre uma colega que parece ser a única outra descendente de indianos, Tamira (Mohana Krishnan). Como a menina está apresentando alguns comportamentos estranhos, a professora pede que a colega converse com ela, lembrando o quanto é importante ter proximidade de pessoas da sua comunidade, que passaram por experiências parecidas com as suas.
Se segue uma obra com técnicas bastante comuns e sem grandes traços de autoria senão a questão da mitologia hindu. Pequenas técnicas de jump scare misturadas com uma boa atuação são os elementos principais para um andamento que funciona, mas passa longe de surpreender. A partir do momento em que se entendem os acontecimentos, para um espectador que já assistiu algumas histórias de terror já é possível imaginar o andamento da narrativa até o seu final.
O elemento mais importante acaba sendo o cultural, e por isso o filme ganha projeção. Apesar de não conhecer sobre a cultura e não poder julgar o quão representativo o filme realmente é, o simples fato de ele existir ajuda a relembrar que o país é formado por imigrantes. Ao mesmo tempo, por ter a figura de Pishach, ele relembra dois medos: o da sociedade estadunidense daquilo que vem de fora, e o dos imigrantes de nunca se incorporarem completamente a essa mesma sociedade preconceituosa.
Há mais um elemento interessante, que é o design de personagem do Pishach. Indo na contramão dos excessos de efeitos gráficos que muitas vezes criam personagens estranhos quando não há acesso a um alto orçamento, é escolhido trabalhar majoritariamente com efeitos práticos. Isso traz ao longa uma atmosfera fantástica de fábula, o que conversa com a questão de ser um horror adolescente. Ao mesmo tempo, por ser um horror PG-13, ele não pode mostrar cenas muito gráficas de violência, o que dificulta a imersão em tempos de extrema sanguinolência.
Considerando que esse é o filme de estreia do diretor, e que é uma das primeiras performances de Megan Suri nas telonas, ainda é possível enxergar muito potencial, tanto pela boa atuação quanto pela ideia original do diretor. Avançando para roteiros um pouco mais rebuscados e técnicas mais autorais, ele pode facilmente se tornar um expoente do gênero.
Nefarious (Chuck Konzelman e Cary Solomon, 2023)
Texto por: Carol Ballan
Aviso: O filme se inicia com uma cena de suicídio, e a partir daí existem diversos gatinhos. Recomendo cautela ao assistir.
Um homem, que ainda não conhecemos, se suicida. Essa é a cena inicial para desenvolver o filme de drama sobrenatural sobre um psiquiatra, Dr. James Martin (Jordan Belfi), que precisa substituir o colega para dar um laudo final para um preso, Edgar Wayne Brady (Sean Patrick Flanery). O acusado de diversos assassinatos precisa de um laudo de que é são e sabia que estava cometendo os crimes. Mas o que o psiquiatra não imaginava é que Edgar na verdade estava possuído por um demônio, Nefarious.
Sendo vendido como o filme mais realista sobre exorcismos de acordo com a Igreja Católica, é possível que parte do público desavisado entre esperando uma narrativa de horror como são normalmente os filmes de possessão. No entanto, se deparará com uma narrativa bastante conservadora que poderia ser uma peça de teatro, dada a sua simplicidade audiovisual. Dois homens conversam por quase duas horas com um discurso que aflige qualquer espectador progressista.
É claro que, além de ser um reflexo de sua época, o cinema também é muito utilizado como propaganda política. E depois do recente caso de O Som da Liberdade, é impossível ignorar que, no Brasil, esta obra está sendo utilizada como uma narrativa política da direita cristã. Em um momento em que pautas importantes como a eutanásia assistida e o aborto são colocados em texto como apenas a batalha dos demônios vencendo os anjos, a perda da possibilidade de escolha por quem passa por esses processos é quase anti ética.
Há muitos exemplos de obras que tratam do combate interno em relação à fé, e trazê-lo ao cinema é, portanto sim, essencial, dada a sua representatividade em relação à experiência humana. Mas colocá-lo como apenas uma história preventiva de que a falta de fé é prejudicial, sem se importar com presente ou passado do personagem, é simplista. Assim como todo o filme é formado, apenas uma forma para passar uma mensagem simples:o mal está vencendo e apenas seguindo os preceitos de uma religião específica que poderemos nos salvar.
A performance surpreendente de Sean Patrick Flanery é um dos poucos elementos que se salva no filme. A atuação como pessoa possuída sem se retorcer fisicamente e com um bom trabalho de voz é bem executada e poderia ser melhor aproveitado por um roteiro que utilizasse esse personagem de maneira mais profunda e menos óbvia.
Novamente, o filme, por si, é apenas uma manifestação de um modo de pensar. Mas utilizá-lo como uma história real que explica a situação do mundo é problemático. E utilizar a religião como justificativa para legislar, inclusive, é ilegal no Brasil. Em uma onda super-conservadora do mundo, a obra não é uma surpresa. Seria mais interessante que ela ao menos utilizasse técnicas audiovisuais mais refinadas ao invés de apenas filmar um diálogo em plano e contraplano, deixando-a enfadonha.
Mussum, o Filmis (Sílvio Guindane, 2023)
Texto por: Jean Werneck
Nessa cinebiografia sobre o humorista Mussum, o drama sobre escolhas é feito ao estilo americano com verniz brasileiro.
Premiado no Festival de Gramado de 2023, Mussum: O Filmis conta a história da carreira de Mussum (Ailton Graça), celebridade da tv brasileira que marcou a música e a comédia nacional. O longa segue o protagonista desde sua infância até o estrelato com o grupo Os Originais do Samba e programas como Escolinha do Professor Raimundo e Os Trapalhões.
Cinebiografias vem sendo um campo explorado pelo cinema brasileiro (Meu Nome é Gal e Angela são algumas das produções lançadas esse ano), contudo poucas conseguem se destacar da mesmice do gênero e, infelizmente, Mussum: O Filmis cai no mesmo erro. A direção de Sílvio Guindane aposta em uma linguagem cinematográfica tradicional que se assemelha ao estilo hollywoodiano de fazer biografias de grandes personalidades. A estrutura padrão crescente se guia pela linha cronológica clássica da infância ao fim da vida e aglutina diversos momentos da vida do personagem, apenas arranhando a superfície de temáticas mais sérias. Questões raciais, a ausência do pai de Mussum e como ele replica isso com os filhos e as polêmicas dos bastidores são tratadas de maneira secundária para dar lugar ao otimismo que o roteiro insiste em sentimentalizar.
Otimismo esse que nos impede de encarar os espinhos da carreira de Mussum e ter uma análise mais completa de sua trajetória.
Esse formalismo americanizado do filme tem um verniz brasileiro para tentar criar uma identidade própria. A trilha sonora e os movimentos de câmera tentam transmitir o gingado carioca do protagonista, contudo não são muito eficazes na estilização do conjunto como todo. As performances de Ailton Graça e Cacau Protásio caem no estereótipo associado aos seus papéis em novelas e beiram o caricato. Isso leva o humor dos diálogos a perder o ritmo e sempre acabar em uma risada escandalosa. Logo, o investimento artístico da obra tem potencial, mas é direcionado para referências pouco singulares.
Mussum: O Filmis não é ruim porque não quer se arriscar a ser original no seu gênero. Portanto, se contenta com uma mediocridade bem feita ao invés de se expandir para uma abordagem mais ousada. Tem um final que seria emocionante, de fato, se não tivéssemos já o visto dezenas de outras vezes nas telonas.
Filme visto na 47 edição da Mostra SP
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