Quando Guillermo del Toro decide contar uma história, os espectadores podem esperar que, apesar de sua dose de efeitos visuais práticos incríveis e metáforas inesperadas, isso será feito com uma dose adicional de sensibilidade surpreendente pelo formato da narrativa. Se acontece com a metáfora do amadurecimento em um país em guerra envolvendo seres míticos e uma lenda antiga em O Labirinto do Fauno, e se repete em A Forma da Água e sua doce história de amor e aceitação através de um elemento de fantasia da criatura anfíbia, já se torna esperado que em O Beco do Pesadelo, com sua ambientação situada nos circos estadunidenses dos anos 1940, um elemento fantástico vá se sobrepor .Felizmente, somos surpreendidos com essa ausência, tornando a história mais diretamente humana e desoladora.
Acompanhamos Stan, magistralmente interpretado por Bradley Cooper, um rapaz com um passado desconhecido que envolve flashbacks de uma casa pegando fogo, a partir do momento em que ele se junta ao circo e começa a compreender o universo de trucagens e pequenos golpes que envolve a maior parte da trupe. Para quem já é habituado ao trabalho do diretor que muitas vezes prefere o uso de efeitos visuais práticos em detrimento dos gerados por computação, percebe-se um fascínio por essa mágica real e seu aperfeiçoamento na figura do protagonista, que passa a auxiliar a jovem Molly (Rooney Mara) a tornar seu ato mais grandioso e dramático.
Aos poucos, percebemos o amadurecimento de Stan dentro desse universo sendo tutelado por Pete, um senhor alcóolatra que já teve seus dias de glória com um show de mentalismo, fadado ao ostracismo por conta de seu vício. Na medida em que ele inicia seus estudos e consegue conquistar Molly, percebemos que seu olhar inocente que outrora tentara contato com o homem considerado selvagem se torna cada vez mais focado em obter uma vida financeiramente mais rica, qualquer seja o custo para a sua consciência.
Quando somos apresentados novamente ao casal na segunda parte do filme, já com algum grau de sucesso com seu ato, é exatamente a consciência que parece se tornar a protagonista da história, seja através da nova possibilidade de aplicar golpes diretos a famílias que desejam contato com entes queridos ou através da análise proposta por Lillith, a terapeuta interpretada por Cate Blanchett. Sendo este ato do longa-metragem o mais realista, focado no drama entre os personagens, é nele também que o filme toma as características de seu destino final: um grande pesadelo.
O uso da técnica para a criação da atmosfera de pesadelo é impressionante, ainda que isso seja esperado do diretor que sempre o fez brilhantemente ao longo de sua carreira. Do contraste entre os tons mais quentes da fotografia do início do filme ao azulado da neve em seu desenvolvimento, assim como o uso de cenários e ângulos de câmera cada vez mais enclausurados, a mudança de atmosfera é perceptível ao espectador. É essa submersão no universo de Stan que nos permite seguir com ele em sua jornada, mesmo nos momentos em que julgamos as suas ações.
O elemento que parece não funcionar a favor do filme é o quanto ele acaba se prende a uma narrativa mais linear, algo existente nas outras obras de del Toro, mas que nelas acaba se tornando uma âncora para a realidade entre os elementos fantásticos e aqui, sem a presença dos mesmos, se torna um pouco cansativo na medida em que se aproxima do terceiro ato do longa. Há também a presença de uma moralidade que, apesar de fazer sentido para os anos 1940 no qual a obra se passa, parece um tanto descolada da realidade dos anos 2020.
Apesar disso, a obra se sustenta muito bem pela sua duração de mais de duas horas, tanto pelo universo muito bem criado narrativa e visualmente quanto pelas incríveis atuações. Para os espectadores que aguardavam o retorno do diretor após suas vitórias no Oscar de 2018, o longa é uma grande surpresa, se adensando na condição humana para além do fantástico.
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