Pedágio (Carolina Markowicz, 2023, Brasil)
Poder assistir o novo longa-metragem da brasileira Carolina Markowicz em sua primeira exibição no festival foi um grande privilégio, ainda mais com a sua premiação após o filme de estréia Carvão ser muito bem recepcionado pela crítica. Na nova obra, a diretora continua a explorar a realidade de cidades menores brasileiras. Suellen (Maeve Jenkins) trabalha em um pedágio em Cubatão, uma das cidades mais poluídas do Brasil. Enquanto isso, seu filho Tiquinho (Kauan Alvarenga) está entendendo sua adolescência como pessoa LGBQTIA+ e faz vídeos para divulgar seu trabalho de revendedor. Quando a homofobia dos seus iguais se torna pública, Suellen sucumbe à pressão e, com a ajuda da amiga Telma (Aline Maria Marta) passa a levar o garoto para a terapia de conversão feia pelo Pastor Isac (Isac Graça). Mais do que isso, não percebendo o abuso dos valores cobrados para tal terapia, começa também a se envolver com crimes relacionados ao ex-namorado Arauto (Thomas Aquino) para poder pagá-la.
Utilizando o português informal, o filme é o “puro suco de Brasil”. Da mãe que se preocupa com o filho sem conseguir se comunicar com ele até a melhor amiga que parece um farol da boa crente, mas que trai seu marido diversas vezes ao longo da obra, todos os caminhos nos levam a pensar sobre o funcionamento dessas instituições que nos são impostas e que seguimos sem grande reflexão. A importância da opinião alheia, dos amigos, dos membros da comunidade, entram como algo que se sobressai ao julgamento interno. As cenas da terapia de conversão por si só já mostram o ridículo de toda a situação, com a ciência sendo ignorada em nome de um bom costume inventado.
As atuações de Maeve Jenkins e Kauan Alvarenga são o primeiro elemento essencial para que o filme funcione, conseguindo traduzir essa contradição entre ser quem você é e tentar respeitar a norma imposta pela sociedade. Eles também conseguem traduzir a relação complexa entre familiares que, apesar de bem intencionados, não conseguem compreender o efeito mais profundo de suas ações. A fotografia expressiva, captando bem o contraste entre as pessoas e a cidade, é um elemento que estiliza a obra e dá mais um passo para Markowicz se consagrar como cineasta autoral. Uma longa vida à sua carreira!
Working Class Goes to Hell (Mladen Djordjevic, 2023, Sérvia)
Para todas as pessoas que já montaram uma programação de festival é fácil compreender que podemos escolher um filme apenas por se interessar pelo seu título. Nesse caso, fiquei interessada na contraposição com The Working Class Goes to Heaven, obra estadunidense sobre um operário que consegue enxergar a sua condição como ferramenta dentro do sistema capitalista. Assim, pensando na possibilidade de uma sátira dessa descoberta, entrei na sessão sem saber muito sobre a obra.
Na obra, somos apresentados ao grupo de trabalhadores que está tentando se reunir contra a abertura de uma incineradora que, apesar de o dono dizer que trará trabalhos à região, todos sabem que não. Aos poucos, vamos entendendo as relações dos personagens com a região e uns com os outros, protestando desorganizadamente contra a nova tecnologia. O filho de um antigo funcionário que morreu no incêndio, Miya (Leon Lucev), aparece novamente na cidade após sair de uma clínica de bem-estar, trazendo consigo habilidades que ele diz serem mágicas. Então, entre um grande esquema de corrupção que envolve a morte de uma jovem, e esse grupo utilizando técnicas cada vez mais estranhas para conseguir o que deseja, o filme se desdobra em uma mistura de gêneros e estilos até o que é basicamente uma piada final.
Apesar de divertida, a obra perde muito de sua força pelas cenas às vezes muito longas e que se repetem no sentido de acrescentar informações à narrativa. Assim, ele gasta muito tempo criando um cenário ao invés de engajar na loucura que ele propõe com suas ações ritualísticas como a contraposição à imobilidade social do capitalismo. Ao mesmo tempo, ao criar uma conversa interna entre o reality-show assistido e a vida daquela massa de manobra é uma maneira mais sagaz de criar uma reflexão com mais sutilidade.
Ao invés de se entregar para a loucura ou de ficar apenas no realismo, a chave que se cria de ficar no meio do caminho é um pouco frustrante dada a excepcionalidade da ideia e a maneira que as cenas são conduzidas. Se saímos um pouco mais marxistas da obra, também saímos com a sensação de que o filme não estava completamente concluído.
Dicks: The Musical (Larry Charles, 2023, Estados Unidos)
Quando o primeiro musical distribuído e lançado pela A24 inicia com uma tela preta explicando que ele conta com a atuação de dois homens gays que interpretam heterossexuais, e você sabe que ele se chama Dicks: The Musical (em tradução livre, Paus: O Musical), é preciso tomar uma decisão entre ficar na sala e abraçar a completa loucura ou sair com a certeza de que você detestou o filme.
Escrito por Aaron Jackson e Josh Sharp, que também atuam nos papéis principais como Trevor e Craig, a obra parece inicialmente uma paródia musical de Operação Cupido (1998). Os irmãos gêmeos, que aqui foram separados no nascimento e se tornaram dois homens adultos perfeitamente heterossexuais, se conhecem no pior momento de suas vidas. E, coincidentemente, eles são gêmeos idênticos (procure uma foto dos atores e entenda a piada visual)! Percebendo que têm interesse em reunir a família, eles começam o seu plano secreto de aproximar o pai Harris (Nathan Lane) da mãe Evelyn (Megan Mullally). E tudo isso narrado por Deus (Bowen Yang).
Se a sinopse te agrada, pense que o musical parece com uma mente levemente insana que recebeu a resposta “sim” para quaisquer liberdades criativas que desejasse. Da mãe cuja vagina caiu ao pai que simplesmente adotou duas criaturas do esgoto, percebe-se que a todo momento a liberdade foi um dos pontos altos da produção. E aí entra a característica de ame ou odeie. Mesmo uma pessoa com os valores mais liberais pode achar que o musical ultrapassa uma linha - mas quem aprecia essa passagem pode se preparar para a diversão.
Há piadas das mais escrachadas, como os irmãos-gêmeos-idênticos-não-idênticos, até as mais sutis como os tropos de musicais como a senhora com a afinação perfeita e as pessoas que estão passando na rua para adentrar um número de canto e dança. Passando por caminhos e escolhas completamente camp, o filme faz jus à sua classificação de 18 anos - mesmo sem nenhuma cena mais explícita. A maior tristeza é pensar que ele provavelmente nunca chegará ao Brasil por conta desse “excesso” de liberdade.
NAGA (Meshal Al Jaser, 2023, Arábia Saudita)
Pouquíssimos filmes que eu assisti na minha vida tiveram um efeito hipnótico parecido do que eu senti com NAGA, o primeiro longa-metragem do diretor saudita Meshal Al Jaser. De uma fuga rebelde dos compromissos familiares para passear com o namorado no deserto, Sara (Adwa Bader) rapidamente tem a noite transformada pelos perigos do deserto e o uso de drogas.
Mas longe de ser uma história moralista, esse é um filme de rebelião juvenil e sobre a vontade de ver o mundo pegando fogo, ainda que dentro da regra precisa do pai: estar no ponto de encontro às 11:59. A sequência de eventos é pensada de maneira tão envolvente que não há questionamento sobre o avançar absurdo da noite: fugir do compromisso com a irmã, ir com o namorado para o deserto, chegar na festa em uma locação questionável, fugir da polícia, de camelo, de bandidos, e tudo mais que puder ser imaginado. E mesmo percebendo os defeitos da protagonista, sentamos na beira da cadeira e desejamos que ela vá conseguir ultrapassar esses desafios.
Existe no filme um frescor adolescente que é universal, ainda que esteja colocado em uma situação extremamente específica. A raiva das regras, do mundo dos adultos e de seus problemas, junto com uma capacidade de pensamento rápido, levam qualquer pessoa a entender um pouco a posição de Sara. E exatamente por isso, o filme flui de maneira frenética com a certeza de que ele não está perdendo seu público. Suas quase duas horas passam em um piscar de olhos e um camelo raivoso. E ainda que este tenha sido o ano do Urso do Pó Branco, eu tenho mais medo de ser perseguida por um camelo do que por um urso.
Dentro de todo esse caos ainda há o espaço para fazer críticas sociais pontuais, tanto sobre a posição feminina dentro da sociedade saudita quanto das hipocrisias do universo masculino. Apesar de não ser um filme nada sutil em dar sua mensagem, ele permanece na mente do espectador muito tempo depois do término da sessão.
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