Close to You (Dominic Savage, 2023, Reino Unido e Canadá)
Não existiria um lugar melhor para a estreia do novo longa-metragem de Elliot Page, o primeiro desde sua transição, do que o Canadá, seu país de origem. Em um drama simples e intimista, feito praticamente através de improvisações, é possível sentir que a obra é uma espécie de catarse pessoal com recados que o ator e roteirista deseja passar para o mundo. Filmado no Canadá e com uma maioria de atores canadenses, ele também parece uma exaltação discreta à arte do país.
No filme, Sam (Elliot Page) é um rapaz com receios de voltar para a casa dos pais para um encontro familiar por conta da possível transfobia que sofrerá. Quando ele decide ir, acaba se encontrando com uma antiga colega de escola , Katherine (Hillary Baack), no caminho, e tem com ela uma conversa profunda antes de seguir para o aniversário. O que se desenrola é um encontro familiar desconfortável e complexo, que parece uma cartilha de como não agir com uma pessoa trans. Nesse sentido, a obra tem esse tom bastante pessoal de uma pessoa trans que possivelmente passou por diversas situações semelhantes.
Apesar de interessante pelo roteiro improvisado e por uma escolha de direção intimista que deixa o espectador sempre absorto na jornada do herói, infelizmente ele não se desenvolve o suficiente para que se torne uma performance ou narrativa inesquecíveis. Há uma boa atuação de todos os envolvidos, mas isso não é o suficiente para elevar o filme ao patamar de excelente, sendo mediano com um ponto positivo de marcar a volta de Page aos longa-metragens.
Ele aos poucos se transforma em um filme interessante para mostrar para pessoas que não conhecem bem as pautas do movimento LGBTQIA+, principalmente por criar uma fácil empatia com o protagonista que poderá levar a uma compreensão maior da causa. No entanto, pensando de uma maneira ativista, ele foca em uma existência pessoal que não é facilmente transponível a um sentimento mais generalista. Ainda assim, sigo interessada nos futuros projetos de Page, que tem se mostrado produtor de excelentes projetos.
Ru (Charles-Olivier Michaud, 2023, Canadá)
Seguindo com a programação de obras canadenses, Ru é um longa-metragem quase épico sobre mais uma experiência de vida bastante específica. Baseado no livro homônimo de Kim Thúy. Com o conhecimento da causa, sendo ela mesma uma refugiada vietnamita no Canadá, a autora cria uma história fictícia de uma família vietnamita rica que tem que começar uma nova vida no país após a queda de Saigon.
Contado a partir do ponto de vista de Tinh (Chloé Djandji), ele mostra o desenrolar de uma situação histórica complexa e também não muito conhecida pelos brasileiros. A família de Tinh precisa fugir de seu país em um barco extremamente arriscado, e é exatamente nesta travessia que as imagens mais perturbadoras e permanentes da obra são mostradas. Ainda que o foco esteja no amadurecimento da menina em meio a uma adaptação cultural e socioeconômica complexa, são os elementos históricos que trazem o melhor da obra, tanto em narrativa quanto em imagens.
Com uma estrutura bem clássica de jornada do herói, a maior reflexão fica em torno do que é um lar, o que faz sentido em todos os países com grandes fluxos de migração, e também para todos os povos que precisam sair de suas casas por conta de guerras. Identidade, traumas e amizade são os elementos que conversam com um público mais amplo do que apenas o de imigrantes vietnamitas.
É necessário apontar também o uso de atores franco-canadenses de origem vietnamita na obra, em um casting que deve ter sido complexo, mas que foi absolutamente um dos grandes fatores de êxito da obra. Djandji, que faz sua primeira grande atuação, é capaz de transmitir a experiência traumática apenas com seu olhar fixo. Novamente, mais um ponto para o cinema canadense.
Without Air (Katalin Moldovai, 2023, Hungria)
Junto a Andragogy, Without Air é com certeza um dos filmes do TIFF que tratou de questões mais atuais em um mundo digital. E algo que eles também têm em comum é o protagonismo de uma professora. Neste filme húngaro, Ana (Ágnes Krasznahorkai) é uma professora de inglês que recomenda o filme Eclipse de Uma Paixão (Agnieska Holland, 1995) como uma tarefa extra para os alunos compreenderem o contexto da produção literária de Arthur Rimbaud e sua relação com Paul Verlaine. Quando um pai conservador vê o seu filho assistindo uma obra com protagonismo homossexual ele inicia uma caça contra a professora.
Infelizmente é uma realidade que soa muito comum e possível para um espectador brasileiro, ainda se recuperando do trauma de um governo abertamente contra a população LGBTQIA+. E considerando todos os avanços que os governos de direita têm no mundo, é uma narrativa que parece cada vez mais plausível e comum. Ainda assim, é louvável que a diretora tenha tido a coragem de realizar esse filme em uma Hungria que já deixou de ser uma democracia e que compartilha essa visão conservadora de mundo.
Permeando essa história assustadora sobre os limites da educação e autoritarismo, a diretora e roteirista conseguiu inserir mais uma camada interessante de leitura sobre a situação do país de maneira cinematograficamente sofisticada. Entre o que não é dito em conversas e até recados que passam nas rádios enquanto Ana dirige, percebe-se um clima de pessimismo no país que ajuda a compreender a sua aflição no caso da perda de emprego.
Pensar que esse é o primeiro filme da diretora traz bastante expectativa quanto aos próximos, pois ainda que sejam perceptíveis alguns momentos nos quais a edição poderia ser mais assertiva e eficiente, a obra é bastante madura tanto em forma quanto em conteúdo. É triste que seja na adversidade que um filme como esse se torne relevante, mas ele consegue abordar de maneira completa uma situação de autoritarismo que poderia acontecer em relação a qualquer outro assunto.
Nyad (Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, 2023, EUA)
Passar do cinema documental para a ficção não é uma tarefa simples, ainda mais quando se é um documentarista já premiado por obras como Free Solo. No entanto, a paixão pela prática esportiva consegue ser totalmente transpassada para contar mais uma história de superação pela dupla de diretores Jimmy Chin e Elizabeth Chai. A história de Diana Nyad parece já estar pronta para a ficção. Uma nadadora profissional que, com 60 anos, decide realizar o sonho impossível de uma vida e atravessar nadando a distância entre Cuba e Estados Unidos para quebrar um recorde mundial parece, literalmente, inventada. Mas a partir da autobiografia de Nyad ela pode ser eternizada e popularizada através da sétima arte.
Com um roteiro baseado na vida real cheia de reviravoltas emocionantes, um ponto essencial era encontrar o casting ideal para dar vida às personagens. A escolha de Annette Bening para interpretar Nyad e de Jodie Foster para interpretar a melhor amiga e técnica Bonnie Stroll é acertada para o sucesso narrativo. As duas conseguem transmitir, além das características pessoais, uma relação de amizade de longo-prazo e amor incondicional que transborda da tela e inspira qualquer pessoa assistindo. É raro ver em telas a amizade feminina, ainda mais com personagens mais velhas, e mais raro ainda em uma representação tão realista que inclui os bons e maus momentos daquela amizade.
Há também a necessidade técnica de conseguir contar essa boa história, mas isso existe de sobra para os diretores já acostumados às situações de gravação mais extremas o possível e que aprenderam através dos documentários como editar um filme para que ele seja dinâmico e com um ritmo que mantenha a atenção de quem assiste. Aqui, existe apenas a extensão de seu excelente trabalho prévio para um novo campo, conseguindo transformar momentos de explicações necessárias em diálogos úteis e que não são cansativos.
O resultado foi, literalmente, um teatro cheio de pessoas torcendo pela trajetória esportiva de maneira que eu nunca havia visto. Uma história incrível, bem contada, e que fala sobre a superação pessoal e física. Tem como não amar?
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