Aviso: Esse filme apresenta gatilhos de aborto e suicídio. Para que todo mundo fique bem, se você for sensível aos temas, talvez seja melhor parar de ler por aqui (e não esqueça que não está sozinho, e se necessário, busque ajuda profissional).
Aviso: Essa crítica contém spoilers.
Antes de começar a falar sobre o filme, é importante parar um minuto para apreciar a mulher que foi Agnès Varda, principalmente ao pensar que o intuito dessa série é refletir sobre mulheres importantes à história do cinema. Do seu primeiro filme, La Pointe Courte (1955), que é considerado uma grande influência ao inovador Cinema Novo Francês, até Varda Por Agnès (2019), uma autorreflexão sobre a carreira e conquistas, é impossível não perceber como a diretora dedicou sua vida à arte até o último momento, dado seu falecimento no mesmo ano do lançamento do último filme. Mirando com sua câmera a maior parte do tempo para personagens marginalizados, e refletindo sobre sua própria vida e trajetória como realizadora e artista, a diretora deixou um grande legado de como tratar temas complicados com delicadeza, mas sem nunca deixar de tratá-los.
Uma Canta, a Outra Não (1977) é um exemplo dessa. O roteiro já se inicia com o drama de Suzanne, uma jovem de 22 anos grávida do terceiro filho e sem dinheiro para o aborto, em situação de tanto desespero que aceita ajuda de uma adolescente, Pomme, dado que o aborto era ilegal na França naquele momento. Esse ritmo de acontecimentos é repetido ao longo de toda a narrativa, contando apenas partes bastante selecionadas da vida das mulheres que a partir desse momento se tornam amigas.
Nesse sentido, é interessante como edição e roteiro estão totalmente alinhados, algo que faz com que o filme permaneça moderno mesmo muitos anos depois. Há cortes onde passam anos na vida das mulheres, de maneira que apenas as partes mais importantes de suas vidas são mostradas. De um show, de repente Pomme está indo viajar ao Irã com seu namorado, mas há facilidade para compreender esses cortes abruptos. Há dois elementos que ajudam nessa clareza da ideia: a inserção da troca de correspondência entre as mulheres, permitindo a narração em voz off sem soar pe0dante e as vezes dando dicas sobre o que está acontecendo ou quanto tempo se passou, e também permitindo recortes que expliquem momentos do passado, como o romance de Suzanne e o aborto e Pomme; e a fotografia simples, que apenas acompanha os personagens e parece quase documental (uma marca da diretora) e facilita a compreensão das trocas de espaço.
Assim, temas vão passando, como o suicídio de Jerôme, os abortos, a luta feminina pela legalização do aborto na França, o crescimento e a criação dos filhos, o nascimento e a morte do amor, e a espectadora passa a se sentir parte daquele círculo de mulheres. Chega-se ao final do filme com uma sensação bastante familiar ao ver que uma próxima geração de mulheres, ali representadas por Marie se tornando uma adolescente, está tomando o lugar da antiga, e que esse ciclo ainda irá se repetir muitas vezes, com todos os dramas de vida sendo parte essencial dela. Há ainda o tom otimista que, apesar de tudo, essas duas mulheres não só sobrevivem, como têm uma à outra sempre que necessário. Ainda sobre esses ciclos, é impressionante perceber como Varda consegue representá-los com as fotografias de mulheres, apresentadas logo no início do filme. Se no início elas parecem apenas um pretexto para o reencontro entre conhecidas, elas acabam se mostrando quase que um tema recorrente do sofrimento feminino ao se sentir abandonadas, onde inicialmente Suzanne se encontra, mas onde Pomme também chega ao se perceber infeliz e grávida, no Irã.
Por fim, é impossível deixar de fora o comentário sobre a inserção de artes dentro da arte, que também são um ciclo na carreira de Agnès Varda. A inserção de músicas e quase instalações artísticas completas combina com o tom levemente onírico dessa fábula sobre ser mulher (sim, branca e francesa, um recorte bem específico, mas que encontra seus ecos). A sensação não é de um musical, mas sim dessa jornada feminina onde força se mistura com doçura, e tristeza acaba se refletindo na arte.
A semana dedicada às diretoras se inicia então com um filme que trás o universo feminino de maneira inovadora tecnicamente, mas que tem um contar de história que parece instintivo. É também um bom exemplo da filmografia da diretora, que tende a mostrar essas jornadas femininas e mistura muito bem diversas manifestações artísticas em tela.
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