TIFF dia 12/set: Shadow of Fire, The Peasants, The Royal Hotel e El Rapto

Shadow Of Fire (Shin’ya Tsukamoto, 2023, Japão)

Shadow of Fire deveria ter sido a minha adição ao texto de filmes sobre Guerras Mundiais, mas infelizmente não o vi a tempo. Trazendo a temática para Tokugawa, Japão, no período logo após a guerra, ele consegue acrescentar mais uma camada de discussão ao conflito através de uma obra de 95 minutos que parecem uma eternidade dada a aflição dos espectadores.

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Shuri é uma mulher que trabalhava em uma casa de lamen e, sem dinheiro ou clientes por conta da crise econômica do país, começou a se prostituir. Acabam em seu caminho o jovem Oga Tsukao, que sobrevive através de pequenos furtos e golpes, e o soldado Hiroki Kono, que busca um emprego capaz de sustentar as noites que passa com Shuri. De uma maneira estranha, eles acabam se tornando uma pequena família disfuncional por conta de suas necessidades por contato humano em uma situação desoladora. Há ainda uma segunda trama, na qual Oga se junta ao também ex-soldado Mirai Moriyama em uma busca misteriosa por uma pessoa (não quero falar muito porque seria um spoiler).

O que o filme executa muito bem é a transmissão do sofrimento japonês mesmo após a guerra, vinculado a uma violência ilimitada. Seja através do ambiente fechado e claustrofóbico no qual a família está presente ou até nos caminhos da floresta, vistos pelos olhos confusos de uma criança que não sabe para onde está indo, o que se percebe é a desolação que gerou um trauma geracional gigantesco na sociedade japonesa. Ainda pensando em um campo mais metafórico, a apresentação da criança como o elemento que cresce em meio a esse caos é uma representação da resiliência japonesa para se reestabelecer, apesar de tudo.

As histórias que são contadas aos poucos também emulam um naturalismo de como as relações entre as pessoas se dão, com partes sendo descobertas a cada momento. Isso, junto com o medo do que poderá acontecer na próxima cena, deixam o espectador grudado na cadeira esperando pelo desfecho da história. Há elementos como os pesadelos recorrentes que todos os personagens têm que mostram a coletividade do problema – e a necessidade de cooperação para que, cada um à sua maneira, resolva suas questões. Apesar de muitas vezes utilizar o diálogo para a exposição dos problemas, as atuações alinhadas com a câmera na altura dos olhos geram um efeito hipnótico, com a emoção importando até mais do que a fala.

Não conhecia o diretor, e saí do cinema com vontade de assistir sua bibliografia. Novamente, é um filme que pode não chegar ao mercado brasileiro, o que é uma pena.

The Peasants (DK Welchman e Hugh Welchman, 2023, Polônia, Sérvia e Lituânia)

Após o sucesso tremendo de Com Amor, Van Gogh (2017) a adaptação do livro polonês The Peasants foi a nova empreitada de DK e Hugh Welchman com sua talentosíssima equipe de animação. Seguindo um estilo estético parecido com o anterior, é contada uma história passada em algum momento do século XIX. Jagna é uma mulher jovem e bonita que, por questões de interesses, se casa com um homem mais velho, Maciej Boryna, sendo na verdade apaixonada pelo seu filho Antek. Entre esse triângulo amoroso peculiar, há ainda as questões de terras e heranças de famílias ao melhor estilo europeu.

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A animação deste longa é tão perfeitamente conduzida que cria imagens que parecem live action. Pelo uso da pintura em tinta a óleo, há uma riqueza de detalhes, texturas e movimentos que não se alcançaria com a computação gráfica, como nas cenas de dança e no movimento do cabelo de Jagna. Ao mesmo tempo, por saberem conduzir a pintura, o uso de cores é muito significativo. Entre os tons terrosos da fazenda surgem as cores de tecidos, comidas e objetos mostrando uma riqueza de detalhes inacreditável. O mesmo ocorre com as expressões dos personagens, com a mudança de detalhes frame a frame fazendo toda a diferença sutil da boa atuação profissional.

Apesar dessa maravilha técnica, a escolha da obra a ser adaptada é complexa. O livro escrito entre 1904 e 1909 foca no sofrimento feminino de forma obsessiva, e mesmo sabendo que ser uma mulher no começo do século XIX era difícil, a falta de quaisquer momentos de alegria em sua vida são reforçados pelo tom melancólico da animação e levam a um resultado difícil de se conectar por suas quase duas horas. Ainda que haja uma certa redenção ao final do último ato, é doloroso chegar até ele observando todos os acontecimentos. Ao adaptar o livro de maneira mais direta, ganha-se essa brutalidade do tratamento que pode deixar a plateia com um mal estar excessivo.

Compreendendo a importância da obra para a cultura polonesa e o detalhamento de ritos e costumes que o escritor conseguiu compilar, a animação também é um marco importante para o país. Mas é um marco que poderia se atualizar um pouco em um novo século no qual a fetichização do sofrimento feminino não é aceita com a mesma facilidade, e tal feito extraordinário de animação poderia ser mais valorizado por uma aproximação menos direta da obra.

Deixo o adendo que pretendo assistir o filme novamente, fora de festivais. Talvez a sessão dupla do sofrimento feminino tenha prejudicado a minha visão, e se for o caso, volto a escrever sobre ele.

The Royal Hotel (Kitty Green, 2023, Austrália e Reino Unido)

Hanna (Julia Garner) e Liv (Jessica Henwick) são americanas de férias da Austrália, que ficam sem dinheiro. Então, recorrendo à possibilidade de participar de um programa de viagem a trabalho, partem para o desconhecido Outback para trabalhar em um pub. E sob essa premissa que certamente parecerá aterrorizante para toda mulher que já viajou sozinha para lugares remotos, Kitty Green inicia o seu novo filme, que mistura o thriller com drama. A parceria novamente funciona muito bem em relação às atuações, mas o roteiro ainda tem pontos que deixam a desejar.

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O processo para chegar ao lugar já deixa Hanna desconfortável, e os espectadores sentem com ela no momento em que percebem que elas estão isoladas em um bar onde não têm nem a opção de pegar um carro e ir embora. E o bar não é algo tranquilo e leve: em sua primeira noite, já percebem que o público é basicamente de mineradores da região, cujo relacionamento com as atendentes anteriores é bastante liberal. E o dono do bar, Billy (Hugo Weaving) claramente não tem tino para o negócio, se preocupando apenas com o dinheiro e a bebida. Três sinais dados, e elas permanecem ali.

O que se segue é uma criação de tensão a partir de microagressões machistas e que ajudam a criar o clima com o qual qualquer espectadora irá, em maior ou menor nível, se relacionar. Cada personagem parece ficar com uma parte das cobranças patriarcais com as mulheres: o cliente que sempre pede para a mulher sorrir mais, o homem que tenta forçar uma relação romântica onde ela não existe. Cada elemento parece se somar à totalidade do quanto as personagens poderiam ter de paciência.

É assim que toda a trama se desenvolve, criando um clima de panela de panela de pressão. E a cada nova cena, há a pergunta sobre o que está prendendo aquelas mulheres àquele local. Por criar esse clima tão realista, há uma grande dificuldade em compreender a escolha final da diretora para o encerramento do longa. Por mais que ele seja catártico, ele não consegue convencer no sentido de desviar muito do realismo que se propõe. Ele é, claro, metafórico. Mas a situação final é tão fora da proposta inicial e dos sinais dados ao longo do filme que parece fora de tom.

El Rapto (Daniela Goggi, 2023, Argentina e EUA)

Com uma carreira que ganhou impulso com a série da Netflix Quem Matou María Marta, a diretora Argentina Daniela Goggi deu voz à uma nova visão sobre as ditaduras militares da América Latina em seu novo longa-metragem. Ao invés de abordar o tema de maneira mais direta, mostrando alguma perseguição política específica, ela coloca sua trama nos anos após seu término com a volta de expatriados do período. Com um país ainda em reconstrução, há forças paramilitares que ainda estão em ação e elas sequestram Cesar (Carlos Garmendia), e cabe a seu irmão Julio (Rodrigo de la Serna) compreender como negociar o resgate.

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Apesar de uma proposta inovadora para tratar do período, o roteiro parece se perder um pouco em seu andamento. Ele se baseia em um relato real sobre um acontecimento parecido, mas parece não encontrar o seu caminho como obra audiovisual. Sendo as vezes um drama familiar e as vezes um drama de tribunal, nenhum dos dois caminhos realmente se desenvolve, e se chega a um resultado no qual, apesar do envolvimento com o personagem principal, faltam informações para compreender a parte judiciária e empatia para tomar as dores da família.

O que mais auxilia no desenvolvimento da trama é a atuação de Rodrigo de la Serna. O ator mostra que, mesmo mais de uma década após de Diários de Motocicleta, permanece comprometido com seus personagens e o amadurecimento de seu papel. Retratando Julio como o homem em seu maior estado de stress, ele consegue transmitir fisicamente a ansiedade. Seja através do cigarro ou da comida, sua transformação é impressionante na medida em que o roteiro se desenvolve, e ele acaba salvando o filme de uma maior mediocridade.

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