75ª Berlinale | Comentários sobre filmes

Sirens Call (Alemanha e Países Baixos, 2025)

Título Original: Sirens Call
Direção: Miri Ian Gossing e Lina Sieckmann
Roteiro: Miri Ian Gossing e Lina Sieckmann
Elenco principal: Gina Rønning, Moth Rønning-Bötel, Rei Spider Barnes, Jason Bötel e Mark Ginsberg
Duração: 121 minutos

A ideia de um documentário sobre pessoas que se identificam como sereias me é muito interessante. Como eu nunca havia visto alguém com essa identidade, a curiosidade é sempre o primeiro elemento a aparecer, e com toda a identidade visual extremamente plástica do documentário, isso se torna ainda mais intrigante. Ao conhecermos a primeira retratada, Gina Rønning, essa curiosidade apenas aumenta: entre figurinos perfeitamente arrumados a uma voz forçadamente mística, entendemos que o documentário está falando sobre essas existências que desafiam a lógica capitalista de haver valor apenas pela produção.

Só que no seu desenvolvimento, percebemos que a documentarista está tão preocupada em contar uma história desenvolvida previamente que ela acaba perdendo uma narrativa latente na tela: quem é essa mulher além da sua identidade como sereia. Nos poucos momentos em que vemos ela quebrando um pouco a máscara de personagem, percebemos que ela também é uma pessoa interessante por si só, com um trabalho super interessante com presidiários em reabilitação.

Assim, fica a dúvida: mais vale fazer um manifesto belíssimo sobre a natureza, ou olhar para aquela pessoa que está na sua frente? Claro que não podemos esperar que um filme seja diferente do que ele é, mas admito que este foi um caso em que tive vontade de ver um filme que não existe.

Holding Liat (EUA, 2025)

Título Original: Holding Liat
Direção: Brandon Kramer
Roteiro: Ra’anan Alexandrowicz, Carol Dysinger e Gordon Quinn
Elenco principal: Aviv Atzili, Aya Atzili, Liat Beinin Atzili, Netta Atzili, Ofri Atzili, Chaya Beinin, Joel Beinin e Tal Beinin
Duração: 93 minutos

Considerando a temática do documentário, que foi o sequestro de Liat Beinin Atzili pelo Hamas no início desta nova guerra entre Israel e Palestina, e a questão de ser uma obra estadunidense, já imaginava que sairia da sala de cinema com um tanto de raiva. Mas, felizmente, fui surpreendida com uma obra muito mais ponderada do que o imaginado.

Gravado por uma família em um momento delicado no qual dois de seus parentes estavam desaparecidos, obviamente há um viés muito específico de uma família desesperada para encontrar esses entes queridos. Mas mesmo dentro dessa situação caótica, aborda-se a questão de maneira muito crítica, principalmente por conta da visão que o pai de Liat tem da política externa estadunidense e israelense, surpreendentemente clara e que compreende que a resolução desse problema para a sua família não é uma resolução definitiva para um conflito muito mais complexo.

É muita coincidência que justamente a família que tinha possibilidades de gravar um documentário tão em primeira mão do caos e destruição também fosse uma família que estivesse em uma polarização tão grande, e que pudesse dar um vislumbre de como há pessoas com diversos posicionamentos políticos mesmo entre os afetados. Obviamente, é triste ver uma destruição e até pensar nas consequências posteriores aos conflitos relatados, mas também é uma possibilidade de acompanhar em primeira mão como as questões diplomáticas têm um grande papel em negociações.

The Old Woman with the Knife (Coreia do Sul, 2025)

Título Original: 파과
Direção: Min Kyu-dong
Roteiro: Kim Dong-Wan, Min Gyoo-dong baseado na obra de Gu Byeong-mo
Elenco principal: Lee Hye-young, Kim Sung-cheol, Yeon Woo-jin, Kim Moo-yul, Yang Ju-mi e Shin Si-ah
Duração: 120 min

Todos os filmes que possuem pessoas idosas fazendo cenas de ação muito bem planejadas têm um lugar cativo no meu coração. Assim, não poderia deixar de conferir o filme no qual Honeyclaw (Lee Hye-young) precisa revisitar os monstros do seu passado como assassina de aluguel para realizar uma última caçada a uma pessoa misteriosa que está tentando atingí-la.

Se já sabemos que o cinema coreano consegue muitas vezes misturar grandes críticas sociais a cenas de ação e matança generalizada dignas de nota, as expectativas quanto à obra eram altas. Infelizmente, talvez até por essas expectativas criadas, a obra acaba caindo em tramas e soluções genéricas que deixam o espectador clamando por mais. As cenas de ação são evidentemente bem construídas, mas não há uma construção de personagens e subtexto que as justifique, sendo difícil se conectar com o filme de maneira menos superficial.

Não sendo um filme nem de longe difícil de ser assistido ou até mesmo curtido, ele acaba apenas sendo uma daquelas obras que caem no esquecimento assim que as luzes se acendem.

Ancestral Visions of the Future (Alemanha, Lesoto, França Catar e Arábia Saudita, 2025)

Título original: Ancestral Visions of the Future
Direção: Lemohang Jeremiah Mosese
Roteiro: Lemohang Jeremiah Mosese
Elenco principal: Bernardo Lobo Faria, Rehauhetsoe Kotsoane, Mochesane Kotsoane e Siphiwe Nzima-Ntske
Duração: 90 minutos

Quando pensamos em filmes, é difícil encontrar diretores que ousem realizar obras que se baseiam mais em uma forma poética do na narrativa. Isso é exatamente o que Lemohang Jeremiah Mosese faz em sua nova obra, que tem uma rima sobre sua origem e criação que se estende por toda a obra, mas que ousa se aventurar mais nos sentidos dos espectadores do que necessariamente em criar uma história com início, meio e final.

O que o diretor realiza é um mergulho profundo em seu subconsciente ao mesmo tempo em que dá um grito político sobre o período de colonização do continente africano. Através das suas vivências, memórias e sentimentos quanto a ser um emigrante de Lesoto, ele conta um pouco sobre a história de seu país e as dificuldades pelas quais ele passou e ainda passa.

A escolha pelo formato poético pode funcionar bem para espectadores com a mente mais aberta, mas infelizmente perde muitas pessoas menos acostumadas a obras mais passíveis de interpretação. Pessoas que cheguem ao filme por conta da obra anterior do diretor provavelmente terão um grande impacto com essa mudança radical de linguagem.

Lurker (EUA e Itália, 2025)

Título Original: Lurker
Direção: Alex Russell
Roteiro: Alex Russell
Elenco principal: Théodore Pellerin, Archie Medekwe, Sunny Suljic, Cam Hicks, Chaize Macklin, Zac Fox, Daniel Zolghadri e Havana Rose Liu
Duração: 100 minutos

Alex Russell aproveita o ótimo momento de sua carreira como roteirista de O Urso, série tanto aclamada pelos fãs quanto premiada pela indústria, para se lançar em seu primeiro projeto como roteirista e diretor de um longa-metragem. Aqui, ele conta a história de Matthew (Théodore Pellerin), um rapaz absolutamente normal que trabalha em uma loja de roupas e que, quando a oportunidade bate à porta, utiliza todos os seus artifícios para adentrar no círculo de amizades de Oliver (Archer Madekwe), um jovem cantor muito promissor.

Mais do que uma história que beira para o thriller psicológico na medida em que a obsessão começa a aparecer, a obra é um grande estudo de personagens entre o garoto que luta para ser aceito e aquele que é simplesmente idolatrado. Com toques de homoerotismo e detalhes interessantes quanto à cultura pop desse momento em específico do tempo, o filme é ótimo em criar tensão – mas infelizmente, não é tão satisfatório em resolvê-la.

Suas maiores qualidades estão nas atuações dos personagens principais que conseguem elevar o roteiro na medida em que nos tornam interessados na vida desses dois personagens. Com uma visão muito limitada sobre as possibilidades de existência dentro do universo cultural, sentimos que a obra não ousa atravessar certas barreiras, o que não faz tanto sentido com a própria ideia da narrativa. Ainda assim, é um filme de estreia bastante claro em suas intenções e que consegue transportar o espectador tranquilamente pela sua narrativa.

Bajo las banderas, el sol (Paraguai, Argentina, Alemanha, EUA e França, 2025)

Título Original: Bajo Las Banderas, El Sol
Direção: Juanjo Pereira
Roteiro: Juanjo Pereira
Duração: 90 minutos

Existem alguns documentários que contam histórias tão surreais que parecem obras de ficção, e este é exatamente o caso de Bajo Las Banderas, El Sol, que trata a ditadura que aconteceu no Paraguai. Através de uma análise de mais de 100 horas de material produzido na época, o diretor conseguiu realizar um recorte que conta a história do ocorrido com clareza e mostra alguns de seus piores acontecimentos.

O filme funciona muito bem como um grande exercício de montagem, uma vez que são utilizados diversos pedaços de reportagens que ocorreram em diversos cantos do mundo para recriar uma narrativa de maneira acessível. Pela questão das diferentes linguagens e aspectos de imagens, isso cria um estilo visual particular ao filme, que com isso também consegue afastar a estética de reportagem que muitas vezes ocorre com documentários.

Um filme essencial para os sul americanos, com ótimo ritmo e com uma história pouco conhecida mesmo nos países vizinhos.

Queerpanorama (Hong Kong, China e EUA, 2025)

Título Original: 眾生相
Direção: Jun Li
Roteiro: Jun Li
Elenco principal: Jayden Cheung, Arm Anatphikorn, Zenni Corbin, Sebastian Mahito, Erfan Shekarriz, Phillip Smith e Ko-Yuan Wang
Duração: 87 minutos

Imagine que, a cada encontro realizado por meio de um aplicativo de sexo casual, você absorva parte da personalidade daquele encontro, ou pelo menos decida performar parte dessa realidade. Esta é a ideia do novo filme de Jun Li, que conta a história de um rapaz (interpretado por Cheung) que passa por diversos encontros, do mais doce ao mais traumático, e passa por uma jornada de transformação de sua personalidade e de busca de seu próprio sentido enquanto um jovem adulto sofrendo da solidão do homem gay.

Brincando com o clichê do universo LGBTQIAPN+, o diretor consegue fazer uma obra sensível e realista sobre esse momento de busca pelos seus interesses e valores. E, como em todo grande filme, ele consegue fazê-lo através de um exemplo super específico que é o da experiência do homem gay em Hong Kong, mas de forma que pessoas de históricos diversos consigam se relacionar com o que é apresentado.

Com uma fotografia em preto e branco bastante elaborada – e vinda do daltonismo do próprio diretor, que se baseou em suas próprias experiências para o roteiro do filme – e uma atuação segura e profunda de Jaden Cheung, podemos entender a complexidade e a solidão dessa existência. É importante comentar também das cenas de sexo, pois a naturalidade com que elas são conduzidas e o erotismo muitas vezes presente são um complexo equilíbrio. Mesmo as falas colocadas nesse contexto são muito bem colocadas e dão uma camada a mais de interpretação para a obra.

Delicious (Alemanha, 2025)

Título Original: Delicious
Direção: Nele Mueller-Ströfen
Roteiro: Nele Mueller-Ströfen
Elenco principal: Fahri Yardim, Valerie Pachner, Carla Díaz, Naila Schuberth, Caspar Hoffman, Julien de Saint Jean e Melodie Casta
Duração: 102 minutos

A luta de classes é um elemento presente em todas as formas de arte, e não poderia deixar de ser assim também com o cinema. Desde Metropolis (1927) até A Classe Operária Vai Para o Paraíso (1971), não faltam grandes obras de diversos países e gêneros que tratam desse mecanismo básico da sociedade. Assim, ao criar mais uma obra que colabore a esse grande histórico de clássicos, é necessário colocar um forte elemento de originalidade e autoria para criar uma obra que não seja esquecida no exato momento em que o filme acaba. Infelizmente, Nele Mueller-Ströfen não foi capaz de fazê-lo.

O longa-metragem entra em todos os estereótipos de filmes produzidos para o streaming, sendo ele mesmo produzido para a Netflix. Com uma infinidade de imagens feitas por drones e que parecem fantásticas na tela, essa plasticidade não se traduz para um drama bem dirigido e com um roteiro firme e surpreendente. Pelo contrário, temos uma obra que dá pistas demais e deixa pouco para a imaginação, criando viradas de roteiro muito previsíveis e que parecem colocadas ali apenas para chocar.

Como uma mistura de Saltburn (2023) e Parasita (2019), falta originalidade e a possibilidade de acrescentar algo à conversa de uma temática importante e relevante. Ao contrário, sente-se que o roteiro se utiliza até de sua capacidade de criação de personagens para reproduzir estereótipos preconceituosos sobre outros países europeus.

Girls On Wire (China, 2025)

Título Original: Xiang Fei de nü hai
Direção: Vivian Qu
Roteiro: Vivian Qu
Elenco principal: Haocun Liu, Vicky Chen, Youhao Zhang, Yitie Liu, Jing Peng, Jiankang, Haoyu Yang e You Zhou
Duração: 115 minutos

Quando lemos a sinopse de Girls on Wire o filme gera um interesse genuíno por parecer misturar diversos gêneros e histórias de mulheres chinesas, menos conhecidas para o espectador estrangeiro. Então, a história de uma garota explorada que busca sua prima para se proteger começa a se desdobrar em tela e a cada nova reviravolta de um roteiro confuso e genérico é difícil deixar de se sentir decepcionado.

A crítica à exploração feminina, por exemplo, é tão simplificada que todos os atos precisam ser exagerados: o trabalho da dublê precisa ser refeito à exaustão, os papeis oferecidos a ela precisam ser muito ruins, a situação em que sua prima se encontra no início do filme precisa ser muito precária. Não há nenhum espaço para as sutilezas, gerando um filme cansativo, descolado da realidade e que parece ignorar que os acontecimentos mostrados em tela em um tom realista deveriam parecer minimamente plausíveis.

Ao pesquisar sobre a obra, fiquei curiosa pelas outras obras da diretora, que parecem abordar uma temática semelhante de maneira mais sutil, para checar se este é um dos casos nos quais um alto orçamento é mais prejudicial a um filme do que o ajuda.

Yunan (Alemanha, Canadá, Itália, Palestina, Catar e Jordânia, 2025)

Título Original: Yunan
Direção: Ameer Fakher Eldin
Roteiro: Ameer Fakher Eldin
Elenco principal: Georges Khabbaz, Sibel Kekilli, Laura Sophia Landauer, Felix Metschan e Hanna Schygulla
Duração: 124 minutos

Yunan é o tipo de filme silencioso que raramente ganhará muitas premiações, mas que se mantem na memória dos espectadores por muito tempo. Com uma narrativa lenta que trata do luto, do exílio e da solidão de maneira poética e muito mais através de ações do que de diálogos, ele não tem um impacto inicial muito grande, mas consegue se desenvolver de maneira bastante satisfatória.

O que o filme nos traz é, em última instância, uma vivência semelhante à de uma crise existencial sofrida pelo personagem. E por mais que isso pareça simples em teoria, na prática envolve planos bastante longos e bem pensados, além de uma atuação excepcional de Georges Khabbaz. Sendo o contrário de um filme para sair se sentindo bem, ele é uma obra para se assistir e sair pensando sobre a humanidade e a nossa fase de capitalismo avançado.

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