Crítica | 14º Olhar de Cinema | Um Corpo Para Habitar

Um Corpo Para Habitar (EUA, 2025)

Título Original: A Body to Live In
Direção: Angelo Madsen
Roteiro: Angelo Madsen
Elenco principal: Fakir Musafar, Cleo Dubois, Ron Athey, Annie Sprinkle, Midori, Yossie Silverman, Ganymede, Paul King e Rig & Sam
Duração: 98 minutos

Existem algumas comunidades que, por mais que o tempo passe e o mundo tenha uma tendência a se modernizar, seguem marginalizadas. Então, é uma alegria imensa ver uma existência como a de Roland Edmund Loomis, também conhecido como Fakir Musafar, ser celebrada e eternizada através de um filme. Roland foi um dos pioneiros do movimento dos Primitivos Modernos, grupo dos EUA voltado às modificações corporais através de rituais xamânicos. Misturando piercings, práticas fetichistas, performances e uma experimentação profunda, sua vida foi dedicada a viver em seus próprios termos e, ainda mais do que isso, criar uma comunidade na qual as pessoas pudessem encontrar outras pessoas com quem compartilhar seus sonhos e desejos.

Mais do que simplesmente falar sobre a vida do homem e criar uma linha do tempo que mostra os acontecimentos importantes, o diretor, roteirista, montador e autor do filme Angelo Madsen consegue criar uma obra audiovisual que utiliza a ousadia do viver de seu personagem para criar sua forma cinematográfica também radical. Com uma pesquisa extremamente minuciosa sobre a vida de Loomis, ele cria um fluxo de consciência marcado pelos fatos reais que discute os diversos aspectos da sua personalidade. E, ainda que mostre um grande respeito pelo artista, ele consegue não ser negligente ao mostrar também a parte de seu trabalho que é considerada problemática, sem o medo de colocar o dedo em uma ferida justamente pela resolução de Loomis em fazer aquilo que considerava correto e ético.

O trabalho de montagem é minucioso, misturando falas do próprio artista, de seus colegas e afetos, e trazendo uma curadoria que mantém o ritmo do filme e traz sempre algo de novo e interessante. Se temos um início que já prenuncia o filme com a questão de imagens fortes das modificações corporais, ainda que a temática perdure por ser um de seus pontos fundamentais, ela se torna cada vez menos chocante quando compreendemos o impacto pessoal e religioso que elas tiveram na vida do representado. Isso é ainda reforçado pela trilha sonora, que consegue misturar o acompanhamento das imagens com sons que remetem aos sinos cerimoniais e dão o tom etéreo que a obra deseja transmitir.

A obra acaba se tornando um exemplo sensacional de cinema queer pela vida do artista, que confrontou todas as questões que a normatividade apresentava sem necessariamente nomeá-las ou torná-las algo a ser discutido. Ele mostra como, mais do que um artista desejoso de chocar a sociedade, ele era uma pessoa em busca de conexões reais com outros seres humanos e com a sua própria espiritualidade, e que ele passou a vida toda entendendo os seus próprios limites e dos outros, sempre de maneira respeitosa com os outros indivíduos. E assim ele eterniza uma figura que todos os membros de subculturas como leather, BDSM, bodymods e fetichistas em geral deveriam conhecer por seu pioneirismo e convicção, algo que muitas vezes se esvai em tempos em que toda subcultura está se transformando em uma estética que dura alguns dias no TikTok.

É difícil encontrar um documentário que ouse tanto na forma e conteúdo e leve o espectador a uma introspecção tão grandiosa sobre seus próprios paradigmas e tabus. O filme se torna um grande presente inesperado para quem perdeu a luz em seu próprio processo de experimentação.

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