Título: Ela Quer Tudo (Estados Unidos, 1986)
Título Original: She’s Gotta Have It
Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee e Zora Neale Hurston
Elenco principal: Tracy Camilla Johns, Tommy Redmond Hicks, John Canada Terrell, Spike Lee, Raye Dowell, Joie Lee e Bill Lee
Duração: 1h24min (84 minutos)
Spike Lee, ainda em início de carreira, demonstra em Ela Quer Tudo uma surpreendente consciência da própria contradição ao dirigir e roteirizar um filme que celebra a liberdade sexual e pessoal de sua protagonista, Nola Darling (Tracy Camilla Johns), mas o faz através de uma perspectiva inevitavelmente masculina. É um longa que entende bem sua tensão interna: a de um homem filmando a liberdade de uma mulher, e que justamente por reconhecer isso, constrói parte de sua força nessa dialética entre discurso e imagem.

O filme se estrutura de maneira fragmentada, quase documental, combinando depoimentos diretos de homens que se relacionam com Nola – depoimentos esses carregados de humor, vaidade e preconceito, com cenas que revelam Nola por si mesma. É nesse embate entre o que se diz sobre ela e o que realmente se vê dela que o filme encontra sua potência. Lee parece saber que, ao colocar esses homens como narradores, está também denunciando, ainda que com leve ironia, a visão distorcida que têm de uma mulher que simplesmente recusa ser definida pelos outros.
Visualmente, Ela Quer Tudo transita com liberdade por formas narrativas diversas: montagem desordenada, temporalidade difusa, trechos em preto e branco, até uma cena colorida musical que surge quase como rasgo de fantasia. Essa estrutura caótica reflete não apenas o espírito livre da protagonista, mas também a tentativa do próprio filme de se libertar das convenções e buscar uma linguagem própria, quase tão independente quanto Nola.
Contudo, essa liberdade estética e política encontra um ponto de inflexão duro na sequência do estupro, que surge como desvio dissonante e difícil de conciliar com o tom até então libertário do longa. É nesse momento que a sensibilidade do olhar de Lee se mostra ambígua, provocando um desconforto que não se resolve. Mesmo assim, o filme retoma sua força ao insistir na ideia de que a liberdade feminina é, acima de tudo, uma questão de escolha, mesmo que essas escolhas sejam imperfeitas ou incompreendidas por quem assiste.No fim, Ela Quer Tudo é um filme que confia no poder da imagem para construir sentido e que, paradoxalmente, revela nas falas de seus personagens masculinos o quão ridículo pode ser o esforço masculino de definir, controlar ou explicar a liberdade de uma mulher. Spike Lee faz disso não apenas tema, mas forma: um filme feito por um homem sobre uma mulher, que termina expondo mais as limitações masculinas do que a própria protagonista.