O Último Azul (Brasil, 2025)
Título Original: O Último Azul
Direção: Gabriel Mascaro
Roteiro: Gabriel Mascaro, Tibério Azul (colaboração: Murilo Hauser e Heitor Lorega)
Elenco principal: Denise Weinberg, Rodrigo Santoro, Miriam Socarrás, Adanilo, Rosa Malagueta e Clarissa Pinheiro
Duração: 1h 25 min (85 minutos)
Distribuição: Vitrine Filmes
O Último Azul é, com certeza, um dos filmes mais aguardados do ano. Desde a conquista do Grande Prêmio do Júri em Berlim, o novo filme de Gabriel Mascaro, um diretor que já vinha se destacando com suas ficções recentes, ganhou um espaço ao lado de O Agente Secreto no hall de filmes nacionais que – espera-se – darão continuidade ao burburinho internacional iniciado pelas conquistas de Ainda Estou Aqui em Veneza, no Globo de Ouro e no Oscar. Se é justo ou não colocar tamanha expectativa em um filme, o fato é que as expectativas foram criadas.

Os filmes do Gabriel Mascaro têm uma atmosfera hermética. Tanto O Último Azul quanto Divino Amor se passam em um Brasil distópico, em um futuro não definido. É ao mesmo tempo interessante e frustrante ver que o diretor e roteirista não tem a intenção de desenvolver esses universos e nos dar mais informações do que as necessárias para a história das personagens centrais. Se em Divino Amor é explícito o caráter conservador do governo fundamentalista religioso que domina o país, em O Último Azul é difícil entender se estamos em um governo de esquerda ou de direita, por exemplo, e isso parece não ser de grande importância, com excessão de breves momentos em que podemos ver pixações que afirmam que “pessoas velhas não são mercadoria”. Essa aparente falta de explicações pode afastar parte do público, mais acostumada com narrativas mais mastigadas, mas, por outro lado, deixa espaço para a imaginação e elucubração do espectador, que se vê livre para preencher essas lacunas com o pouco de informação que o filme nos apresenta.
Tereza, a protagonista de O Último Azul interpretada magistralmente por Denise Weinberg, é uma senhora de 77 anos que ainda conta com mais três anos de “vida normal” antes de ser levada para as colônias de idosos, onde todos acima de 80 são levados involuntariamente para “desfrutar” de seus últimos anos de vida. Porém tudo muda quando o governo decide baixar a idade limite para 75 e, de repente, ela se vê perseguida por diversas limitações em seu cotidiano. Perde o emprego e a autonomia para fazer algumas coisas básicas sem a autorização da filha, que recebe uma parcela de dinheiro para cuidar da mãe idosa enquanto ela não é levada.
A forma como o filme aborda a crise de Tereza, que não quer ir para as colônias tão cedo, é muito bonita e sensível. Uma cena que chama a atenção é quando ela diz que ainda tem muita coisa pra fazer antes do retiro, como realizar o desejo de andar de avião, por exemplo, e é questionada sobre porque nunca pensou nisso antes. A resposta é que ela “estava trabalhando, ia pensar nisso quando?”. Esse breve comentário sobre a vida de um trabalhador comum frente ao capitalismo já adianta muitas questões que o longa aborda, enquanto a protagonista idosa explora aspectos da vida que nunca teve a chance de explorar antes – ou até mesmo de entender que gostaria de explorar.
Com um foco claro na questão do envelhecimento, o filme acompanha uma pequena viagem de Tereza, que busca a experiência de voar de avião a todo custo. Ao visitar uma agência de viagens para tentar comprar uma passagem de ida e volta para o mesmo dia, se vê bloqueada pela filha, que impede a compra. Então só lhe resta fugir e tentar chegar ao seu objetivo por meios ilegais. É assim que ela conhece Cadu (Rodrigo Santoro), o dono de um barco que pode levá-la até a cidade onde, talvez, ela consiga voar em um aeroplano. No meio do caminho, eles encontram um caracol da barba azul, cuja baba tem propriedades psicodélicas e proporciona uma intensa viagem quando entra em contato com os olhos. Tereza recusa a experiência, mas Cadu se utiliza dela para entender que precisa entrar em contato com suas falhas e frustrações para poder seguir em frente. Mesmo que curto, o encontro entre essas duas personagens modifica o destino das duas, não só no sentido material.
A história segue e continua proporcionando encontros de Tereza com outras personagens que atravessam seu caminho brevemente, incluindo um momento em que ela quase é levada para as colônias e temos um vislumbre da forma um tanto desajeitada com que os idosos são tratados no processo. Aqui, volto a citar a escolha de Mascaro de focar na jornada e nas decisões de Tereza e não no mundo em que ela está inserida. O que é esse governo? Qual é o propósito das colônias? O que acontece por lá? Há uma intenção de lucro com as colônias? Por que as pixações comparam os idosos à mercadoria? Não conseguimos entender com muita clareza, mas o que importa é a busca de Tereza por sua própria libertação frente a uma sociedade que não está pronta para lidar com idosos que não podem e talvez nem queiram ser “úteis” e “produtivos”. Neste sentido, o filme me lembrou o japonês Plano 75 (2022), de Chie Hayakawa, em que idosos a partir dos 75 anos são convidados à passar por uma eutanásia voluntária e “virar árvore” com suas cinzas sendo colocadas em um vaso de plantas. Também me lembrou o livro As Intermitências da Morte, de Saramago, sobre uma cidade onde a morte deixa de existir e seus cidadãos precisam lidar com idosos e doentes que não se vão nunca. Quando se vive em um sistema que visa produtividade e lucro, o que fazer com corpos que não servem a esses propósitos?
Mascaro também opta por nos entregar um final não apenas digno da jornada de Tereza, mas que faz muito sentido com a mensagem que o filme busca passar sobre a velhice não ser o fim da vida. Não pretendo falar muito mais sobre a narrativa, pois esta convida o espectador a viajar pelo desconhecido junto com Tereza, mas vale citar uma cena belíssima que mostra um confronto entre dois peixes carregado de simbolismos. O encerramento da história, focado na relação entre Tereza e Roberta (outra personagem que cruza seu caminho, interpretada por Miriam Socarrás) que se desenvolve de forma incerta entre uma amizade e um romance – e que não precisa se definir para fazer sentido – ainda levanta a questão da amizade entre pessoas idosas, principalmente entre mulheres solitárias.
Voltando à questão do primeiro parágrafo, acho difícil O Último Azul agradar grande parte do público, mas, independente disso, é um filme que merece sim a atenção e a antecipação que recebeu. Ao trazer para as telas do mundo todo um pouco do Norte do Brasil (tão pouco explorado em nossas produções, principalmente de forma não estereotipada) com uma fotografia muito bonita que valoriza desde as paisagens naturais através de planos abertos até os espaços fechados muito bem ambientados por uma direção de arte que não cai na armadilha de fugir do simples, uma trilha sonora lisérgica e o tema do envelhecimento tratado de forma tão sensível, o filme se destaca tanto na filmografia do diretor quanto na deste ano e se mostra mais uma força do cinema brasileiro.