Crítica | 49ª Mostra de São Paulo | O Filho de Mil Homens

O Filho de Mil Homens (Brasil, 2025)

Título Original: O Filho de Mil Homens
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Daniel Rezende
Elenco principal: Rodrigo Santoro, Rebeca Jamir, Johnny Massaro, Miguel Martines, Juliana Caldas
Duração: 128 minutos (2h 8 min)

Adaptação de Daniel Rezende do livro de Valter Hugo Mãe acolhe os marginalizados em uma família ligada pelo afeto e se firma como um dos melhores filmes do ano

Uma experiência que eu indicaria a todo cinéfilo passar ao menos uma vez é assistir a uma sessão com a presença do diretor, elenco ou equipe do filme. É sempre interessante ouvir o que os motivou a chegar até ali — afinal, não é fácil fazer cinema, ainda mais no Brasil.

Festivais são uma excelente oportunidade para esse tipo de encontro, e pude vivenciar isso mais uma vez na 49ª Mostra de Cinema de São Paulo. Pouco antes da exibição, Daniel Rezende, diretor e roteirista da adaptação de O Filho de Mil Homens, contou que alguns livros parecem inadaptáveis às telas, e que o de Valter Hugo Mãe parecia ser um deles. Ainda assim, ele decidiu se arriscar.

Que bom que ele ousou realizá-lo. O próprio autor disse que o filme não só estava à altura de seu romance, como talvez o tivesse superado. Concordo com ele na primeira parte. Sobre a segunda, não estou tão certo.

A trama acompanha Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador que há tempos vive isolado à beira da praia e é visto como um “bicho do mato” pelos moradores da cidade. Com um vazio no peito, sente-se um pai sem filhos, até que encontra, por acaso, um filho sem pai: o pequeno Camilo (Miguel Martinez). A partir daí, os dois constroem uma família sem mãe. Quando Crisóstomo se apaixona por Isaura (Rebeca Jamir), uma mulher misteriosa, uma teia de afetos se forma entre eles e outros personagens que cruzam seus caminhos.

Adaptar a tração emocional contida nas frases de Valter Hugo Mãe é um desafio. De forma fluida e cotidiana, o autor constrói uma narrativa não linear, fragmentada pelas experiências dos protagonistas e costurada em um desfecho acolhedor e compassivo — tudo enquanto lança máximas que ficam na mente do leitor por dias, como “esperar é amar” ou “para dentro do homem, o homem caía”.

Daniel Rezende domina isso com destreza na direção. Conhecido por comandar o universo da Turma da Mônica nos cinemas e por assinar a montagem de filmes como Cidade de Deus e A Árvore da Vida, consegue transformar em imagem os cenários descritos no livro sem querer seguir à risca a maneira como eles são imaginados, mas sendo igualmente fiel a essência da ambientação. 

Em consonância com o diretor de fotografia Azul Serra, Rezende explora as paisagens naturais e a poesia nelas contida, enquanto a direção de arte de Taisa Malouf acrescenta uma paleta cromática que identifica cada personagem: Crisóstomo em tons alaranjados, Isaura no verde e Antonino no azul. 

Como roteirista, no entanto, Rezende enfrenta uma dificuldade maior ao condensar a complexidade da literatura. A opção de alterar a ordem de aparição dos núcleos funciona para manter o olhar do espectador preso à tela e a passagem do tempo é tratada com sensibilidade. Por outro lado, a condensação dos capítulos prejudica o ritmo e elimina quase por completo o drama de Rosinha e sua filha, parte essencial no livro.

Essa pequena frustração, porém, se desfaz diante do talento do elenco. Rodrigo Santoro entrega uma performance excelente como Crisóstomo — um protagonista que poucos atores conseguiriam interpretar com tanta delicadeza. Sua pureza, distante da tradição e da formalidade da vida urbana, o torna encantador, ainda mais ao lado do inseparável boneco de pano que sempre sorri, aconteça o que acontecer.

Rebeca Jamir, Juliana Caldas, Antonio Haddad, Inez Viana e o jovem Miguel Martinez também dão conta do recado. Mas Johnny Massaro e Grace Passô são destaques absolutos: ele, pela atuação afetada e melancólica do homem-maricas; ela pela atuação irredutível e o sotaque francês irritantemente insistente como a mãe de Isaura. 

O Filho de Mil Homens é uma reflexão profunda sobre a maneira restritiva e burocrática que a sociedade impõe padrões de convivência — casamentos arranjados, sexo como função reprodutiva e o preconceito contra qualquer criatura que escapa da norma heteronormativa.

Como ato de resistência, resta aos marginalizados encontrar companhia na solidão uns dos outros e compreender o verdadeiro significado de amor, família e felicidade por meio de laços improváveis. É sobrevivência, é íntimo, é universal.

Antes da sessão, Valter Hugo Mãe comentou que o exercício literário é solitário — feito apenas com alguns lápis baratos —, enquanto o cinema é uma criação coletiva, em que cada membro da equipe contribui para a construção de um mundo. E talvez essa seja a diferença mais bela entre o livro e o filme.

Filme assistido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

1 comentário em “Crítica | 49ª Mostra de São Paulo | O Filho de Mil Homens”

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