Crítica | 49ª Mostra de São Paulo | Sirât

Sirât (Espanha, França, Marrocos, 2025)

Título Original: Sirât
Direção: Óliver Laxe
Roteiro: Óliver Laxe e Santiago Fillol
Elenco principal: Sergi López, Bruno Núñez Arjona, Stefania Gadda, Jade Oukid, Tonin Janvier, Joshua Liam Henderson
Duração: 1h55min (115 minutos)

Premiado em Cannes, road-movie espanhol dança entre a vida e a morte no meio desértico da guerra

“Mais fina que um fio de cabelo e mais afiada que uma espada.” Assim o diretor espanhol Oliver Laxe define Sirât, conhecida no islamismo como a ponte que separa o céu do inferno. No filme, esse conceito se materializa em um lugar sem localização exata, onde um pai e seu filho percorrem o deserto em busca de Mar, a filha mais velha que desapareceu há meses em uma das muitas raves intermináveis sediadas no sul do Marrocos.

O roteiro, assinado por Laxe em parceria com Santiago Fillol, é tão árido quanto o solo marroquino. Não há explicações sobre o motivo de a filha de Luís (Sergi López) ter abandonado a família, sobre o que leva tantos europeus a se aglomerarem para dançar em uma região castigada pela guerra, ou sobre os conflitos geopolíticos que os trouxeram até essa atmosfera apocalíptica.

Resta ao espectador deduzir as lacunas a partir dos diálogos, intercalados com a câmera que contempla o espaço e nos ambienta na distopia com a fotografia de tons terrosos de Mauro Herce e a trilha sonora quase ensurdecedora de David Kangding Ray, que mescla batidas eletrônicas com o terror do armagedom — uma das composições mais originais do cinema recente.

A experiência devastadora de Sirât se divide em dois momentos. A primeira metade segue o molde de um road movie, subgênero em que a viagem é o eixo da narrativa. O encontro improvável de Luís e Esteban (Bruno Núñez) com um grupo de andarilhos punk faz crer que a história é sobre a jornada e como ela transformará seus personagens até o destino final.

Até esse ponto, a dança — elemento simbólico central — soa como uma forma transcendental de resistência ao fim do mundo. A expressão corporal eletrizada pela música estrondosa dos paredões de som é uma resposta às tragédias inevitáveis da vida para o quinteto Steff, Josh, Bigui, Tonin e Jade, que interpretam variações de si mesmos.

O foco na relação de acolhimento entre os personagens e o espírito libertário que compartilham muda de tom com o acidente de Esteban. A sequência acontece tão rápido que o espectador mal tem tempo de reagir. O impacto é ampliado pela maneira sutil com que Laxe e Fillol constroem o momento — primeiro com a quase morte do cachorro de Esteban e, depois, com o alerta do pai para que o garoto se afaste de um precipício.

A partir daí, a tensão se intensifica e Sirât assume um tom de Mad Max: Fury Rave — como definiu com precisão um usuário do Letterboxd, em referência ao brutal Mad Max: Estrada da Fúria. Assim como na obra-prima de George Miller, Laxe conduz o público por uma estrada à beira da morte e subverte o road movie ao eliminar a ideia de destino. Não há para onde ir, nem a ilusão de chegada. Entre o céu e o inferno de Sirât, o que resta de mais próximo da esperança é o purgatório da existência.

Nesse segundo momento, a dança, coreografada magistralmente por Kynsie Serre, deixa de representar o escape da realidade e se torna um instrumento de alienação. Esses estrangeiros europeus, que se aventuram como colonizadores em território africano devastado, ignoram o sofrimento dos locais em meio à guerra — até que passem a sentir a mesma dor. Atingidos por fatalidades naturais e campos minados, terminam no mesmo veículo que os nativos, que encaram esse horror todos os dias.

O desfecho emblemático esclarece parte das intenções de Laxe, mas não dissipa a sensação de estômago revirado e semblante catatônico que o filme provoca. É compreensível que Sirât tenha abalado as estruturas do Festival de Cannes deste ano, conquistando o Grande Prêmio do Júri, e que gere sentimentos conflitantes em quem atravessa esse deserto dançando entre a vida e a morte — e é, ao mesmo tempo, atravessado por ele.

Filme assistido na 49ª Mostra Internacional de CInema em São Paulo

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