Crítica | 50º TIFF | Foi Apenas Um Acidente

Foi Apenas Um Acidente (Irã, França e Luxemburgo, 2025)

Título Original: Yek tasadof-e sadeh
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
Elenco principal: Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten e Majid Panahi
Duração: 105 minutos (1h45min)

Pensar no cinema de Jafar Panahi e pensar na pessoa Jafar Panahi são atos indissociáveis. Isso não acontece apenas por ele estar em frente às câmeras em muitos de seus longa-metragens, mas também pela importância de sua resistência ao regime autoritário iraniano e a insistência em fazer filmes sobre o país e em seu território. Assim, Foi Apenas Um Acidente também tem que ser pensado como um ato de rebeldia contra um sistema que o sentenciou a não dirigir mais filmes e mesmo assim não conseguiu: sua capacidade e vontade são maiores do que as imposições desse regime.

É interessante como a reflexão proposta pela obra se relaciona fortemente com os acontecimentos da vida do cineasta nos últimos anos. Nele, tudo se inicia com o acidente citado no título: Eghbal (Ebrahim Azizi) está no carro com a sua família e acidentalmente atinge um cachorro. Só que esse acidente faz com que ele tenha que parar em uma oficina, e ali Vahid (Vahid Mobasseri) ouve o som de sua perna protética e o reconhece como o torturador da época em que esteve preso. Ele realiza então um plano de vingança e em um último momento tem um pensamento sobre a possibilidade de não ter capturado a pessoa correta, e então se inicia uma odisseia particular para decidir qual será o destino desse homem.

Por mais que todo o parágrafo anterior pareça um grande spoiler sobre a narrativa do filme, essa noção geral na realidade diz muito pouco sobre o seu conteúdo. Isso acontece porque a verdadeira história está nos encontros e nos diálogos que a obra propõe. Ainda que obviamente isso seja importante para um filme com narrativa mais clássica, a preciosidade desse roteiro está nessa discussão moral sobre a vingança, moralidade e como a vida das pessoas é afetada quando o Estado falha com elas. Ela está nas peculiaridades de cada um dos personagens apresentados e nas pequenas situações cada vez mais bizarras que eles vão se envolvendo, assim como na solução que vão encontrando. Ou, simplificando através de um dito popular, é um filme sobre a jornada, e não sobre o destino.

Neste sentido, o diretor faz algo muito inteligente ao apresentar os personagens para o público sem nos dar muitas informações sobre eles. Isso pode gerar um estranhamento em um primeiro momento, dado que os filmes costumam tentar criar uma visão clara sobre o papel de cada um dos agentes naquela história. No entanto, em um filme que está tentando falar sobre julgamentos morais, nada parece mais justo do que permitir aos espectadores uma experiência parecida com a que os próprios personagens estão lidando. Ocorre inclusive um fenômeno no qual as pessoas saem da sala de cinema e continuam a reflexão sobre o filme, se perguntando o que fariam no lugar daquelas pessoas.

Seu próprio tempo na prisão também aparece nas telas, através das memórias compartilhadas por aquele grupo de personagens que também foram presos políticos e passaram por momentos bastante violentos na prisão. Por mais que a violência em tela não seja tão grande quanto em um filme mediano de ação hollywoodiano, ela é demonstrada nas entrelinhas e subtexto, o que faz bastante sentido considerando tanto o orçamento do filme como o modo que ele foi filmado, uma vez que tinha que ser mantido em segredo para que as gravações não fossem impedidas.

Essa maneira de filmar em segredo faz com que o filme se concentre na locação do carro, mas isso também permite que viajemos com os personagens para vários espaços e que eles passem por situações das mais cotidianas, como a polícia ignorando o crime acontecendo para pedir uma propina, até as mais peculiares, como a mulher em trabalho de parto sendo admitida em um hospital. Por mais que isso pareça simples, essa construção da narrativa faz com que o público consiga compreender melhor o dia a dia de um país com o qual tem pouco contato, e dá uma dimensão especial a um lugar do qual só recebemos notícias relacionadas ao seu governo e conflitos externos. Ele ajuda a fazer com que tenhamos a noção de que ali habita um povo, e que é capaz de contar as suas próprias histórias.

Assim, Panahi consegue novamente nos tocar com uma narrativa relativamente simples, mas cheia de reflexões. Com violência, humor, afeto e aflição, ele nos faz refletir sobre a nossa própria humanidade e sobre as consequências de um Estado autoritário na vida das pessoas comuns.

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