Crítica | La Chimera

Crítica | La Chimera (2023)
Direção: Alice Rohrwacher
Roteiro: Alice Rohrwacher, Carmela Covino, Marco Pettenello
Elenco: Josh O’Connor, Carol Duarte, Isabella Rossellini, Vincenzo Nemolato, Alba Rohrwacher, Lou Roy-Lecollinet
Duração: 131 minutos
Disponível em: Mubi

Nos anos 80, Arthur (Josh O’Connor) é um arqueólogo inglês em crise que volta para o interior da Itália após ter perdido sua namorada. Lá, ele se reencontra com um grupo de amigos envolvido no mercado ilegal de artefatos históricos – os tombaroli, como são conhecidos os saqueadores de tumbas na região.

Visivelmente transtornado, Arthur veste um terno branco desgastado, que representa o seu estado emocional após a perda de Beniamina, sua companheira cuja imagem aparece em flashbacks. Ao vê-lo caminhando em uma estrada de terra na beira de um morro enquanto usa a roupa branca amassada, vemos uma imagem ambígua, algo que o filme explora a todo tempo – o belo e o sujo, a leveza e o peso, o masculino e o feminino, o rural e o urbano, o antigo e o moderno. Essa sensação está ainda na trilha sonora, nos efeitos visuais e na fotografia, buscando refletir o mundo interior dos personagens.

Se na mitologia grega uma quimera significa um monstro de corpo híbrido com partes de vários animais, a diretora Alice Rohrwacher traz esse hibridismo nos estilos, formatos e línguas faladas (são quatro, entre italiano, inglês, francês e português), trazendo à produção elementos de romance, drama e comédia.

A câmera faz movimentos dinâmicos e às vezes incomuns que deformam a realidade, incluindo momentos de quebra da quarta parede e efeitos visuais que aceleram ou invertem a imagem – colocando o protagonista de cabeça para baixo, por exemplo. A experimentação visual e a variação de formatos de película (35mm e 16mm) fazem a obra transitar entre o cotidiano pacato e o realismo fantástico. As referências ao cinema clássico italiano estão tanto na estética quanto na abordagem neo-realista, com a cena da praia lembrando um Marcello Mastroianni, também de terno branco, perambulando pela Itália do pós-guerra em 8½ (1963), de Fellini.

As paisagens de uma Toscana rural são encantadoras nas lentes de Hélène Louvart, que repete a parceria com a diretora desde As Maravilhas (2014) e Lazzaro Felice (2018). Em La Chimera, a região em que Alice cresceu é ilustrada no dia a dia simples dos cidadãos. O elenco, aliás, mistura atores profissionais e não-profissionais locais, adicionando uma camada de realidade da vida no interior.

Por falar em elenco, a brasileira Carol Duarte (A Vida Invisível, 2019) entrega momentos divertidos e encantadores como Itália, uma imigrante que troca seus serviços de empregada por aulas de canto com Flora (Isabella Rossellini), a mãe de ​​Beniamina.

Ao visitar a sogra – que também está em estado de negação com a morte de sua filha –, Arthur encontra a jovem Itália e reencontra aquilo que ele perdeu nos últimos tempos: o ânimo de viver. Juntos, eles formam um contraste interessante, cheio de poesia e esperança.

A narrativa surpreende por trabalhar bem a dinâmica entre os personagens e elementos simbólicos que aparecem como que por acaso na primeira parte do longa-metragem. Ao fazer um paralelo entre arqueologia e autoconhecimento, o filme nos convida a escavar as camadas da alma, mergulhar na angústia e aprender a desapegar do passado. Faz refletir sobre o luto e sobre como é possível recuperarmos parte de nós mesmos quando perdemos alguém que completava nossa identidade.

Os objetos e estátuas enterradas de outras civilizações que os tombaroli resgatam representam o legado de povos que viveram ali há muito tempo, mas também o caráter impermanente da vida, afinal esses mesmos povos acabaram desaparecendo nos escombros do tempo. Nosso tempo aqui é muito curto para carregar o peso do que passou. Afinal, como lembra a personagem Itália, “a vida é temporária” – e, justamente por isso, tão preciosa.

Mesmo sem explicar tudo, o final é satisfatório por sugerir o nascimento de uma nova consciência a partir da assimilação e reinterpretação dos fatos. A sensação é de uma jornada completa de transformação interna. La Chimera é menos sobre entender e mais sobre sentir o passado ficando para trás por meio de uma jornada poética, mística e profunda sobre desapego.

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