Crítica | Lispectorante

Lispectorante (Brasil, 2024)

Título Original: Lispectorante
Direção: Renata Pinheiro
Roteiro: Sergio Oliveira e Renata Pinheiro
Elenco principal: Marcélia Cartaxo, Pedro Wagner, Grace Passô, Fatima Aguiar, Karina Buhr, Gheuza, Brenda Lígia, Nivaldo Nascimento e Clara Pinheiro
Duração: 93 minutos
Distribuição brasileira: Embaúba Filmes

Lispectorante e os delírios frustrados da arte como sobrevivência

Em Lispectorante, Renata Pinheiro constrói um retrato fragmentado de uma mulher em crise, embalada por devaneios poéticos que raramente se sustentam. A proposta até aponta para caminhos sensíveis — o retorno a uma casa do passado, a redescoberta de si em uma cidade em ruínas, a tentativa de reencontro com a arte — mas se perde na sobrecarga de ideias mal amarradas e em uma mise-en-scène por vezes excessivamente amadora.

Glória Hartman (vivida por Marcélia Cartaxo, com brilho pontual), chega a um Recife abandonado e vibrante, carregando frustrações profissionais, afetivas e criativas. Ela vaga por prédios históricos e hotéis decadentes, se envolve com um artista de rua, encontra um guia que pontua relações com Clarice Lispector, e mergulha em lembranças difusas que vão de Carmen Miranda à pandemia. O longa se estrutura como uma colcha de retalhos: há distopia, herança, memória, burocracia, arte de rua, amor livre e referências literárias — tudo apresentado sem o devido equilíbrio dramático ou coesão narrativa.

Embora o filme evoque Lispector em seu título e em nomes de personagens, nenhuma obra da escritora é de fato adaptada ou explorada com profundidade. A inspiração parece mais sensorial do que textual, diluída em cenas oníricas que, embora visualmente inventivas, não têm força para sustentar o vazio deixado pela falta de desenvolvimento dos temas propostos. A personagem principal transita entre o delírio e a realidade, mas o filme falha ao encontrar uma gramática própria para essa travessia.

O roteiro, assinado por Pinheiro e Sérgio Oliveira, flerta com a alegoria e a crítica social, mas se perde em escolhas ingênuas e diálogos pouco inspirados. A tentativa de representar o caos interno da protagonista acaba se confundindo com a desorganização da própria estrutura do filme. As relações interpessoais, como o envolvimento amoroso com o artesão nômade, carecem de emoção, química ou propósito narrativo, resultando em interações que soam artificiais e desconectadas.

Visualmente, Lispectorante até encontra beleza em certos momentos de liberdade criativa, especialmente quando a narrativa se descola do realismo e aposta em atmosferas mais abstratas. Cartaxo brilha, como sempre, quando pode se perder em meio às cores e ruídos da cidade. Grace Passô, em participação pontual mas marcante, também deixa sua marca em uma das cenas mais inusitadas e simbólicas do longa. No entanto, esses lampejos de inventividade são insuficientes diante de uma obra que hesita entre a liberdade poética e a necessidade de explicação.

No fundo, Lispectorante parece sofrer do mesmo mal que aflige sua protagonista: o peso de precisar produzir algo significativo, quando o ímpeto criativo está em colapso. O filme quer ser afeto, quer ser imagem, quer ser sonho — mas se prende a estruturas convencionais que sabotam sua própria proposta. Como Glória diante do uniforme de um emprego formal, o longa se asfixia ao tentar enquadrar-se em uma narrativa que, talvez, devesse apenas flutuar.

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