Abril (Geórgia, Itália e França, 2024)
Título Original: აპრილი
Direção: Déa Kulumbegashvili
Roteiro: Déa Kulumbegashvili
Elenco principal: Ia Sukhitashvili, Kakha Kintsurashvili e Merab Ninidze
Duração: 68 minutos
Entre os vastos horizontes do leste da Geórgia, Dea Kulumbegashvili dirige longa sobre humanização e monstruosidade a partir do corpo e do olhar feminino.
Isolada em seu vazio existencial, Nina (Ia Sukhitashvili) vive sozinha no leste da Geórgia, trabalhando como exímia obstetra em um hospital da região e, secretamente, realizando abortos caseiros para mulheres e meninas. Contudo, quando um bebê morre durante um parto delicado sob seus cuidados, uma investigação interna se inicia, ameaçando a carreira dela como médica, a única área de sua vida que ainda a mantém de pé.

Dea Kulumbegashvili é uma cineasta com um dos sobrenomes mais desafiadores do planeta — mal consigo escrever, quanto mais pronunciar — e com uma carreira igualmente singular no cinema. Em 2016, foi a primeira diretora georgiana a ter um filme exibido no Festival de Cannes, com o curta minimalista Invisible Spaces. Em 2020, Beginning, seu primeiro longa, foi o primeiro filme georgiano a receber o prêmio máximo no Festival de San Sebastián. Abril, seu novo projeto independente, saiu premiado no Festival de Veneza de 2024 e provoca sentimentos ambíguos ao trazer uma trama densa que tenta estabelecer um diálogo com o espectador por meio de seus longos e silenciosos planos, mas que acaba por ser uma experiência desoladora e incomunicável, ou seja, um distanciamento emocional tão grande a ponto de não nos conectar com o enredo.
Desde o epílogo, com a imagem de um corpo desfigurado em um espaço escuro e o som de crianças brincando ao fundo, é difícil conectar-se com a protagonista. Nina é uma mulher fria, impenetrável e opaca, que assumiu para si o dever de ajudar outras mulheres a viverem a maternidade com liberdade, permitindo que escolham ou não ser mães, em uma sociedade onde essa escolha lhes é negada. Para realizar essa tarefa árdua, ela se anula completamente, extinguindo sua vulnerabilidade a um preço altíssimo. A célebre frase de Clarice Lispector em A Hora da Estrela se encaixa perfeitamente para Nina: “Quem já não se perguntou: Sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?”.
Ciente da complexidade de Nina, Kulumbegashvili usa recursos técnicos para trazer leveza ao roteiro. A câmera subjetiva nos coloca na perspectiva da obstetra, tentando revelar seu olhar sobre o mundo e contrapondo a maneira como ela se vê. Em uma das raras cenas ritmadas de Abril, notamos que a pessoa mais próxima de Nina é seu colega David (Kakha Kintsurashvili) — os nomes georgianos são bem peculiares, juro —, que, apesar de sua proximidade, ainda não consegue decifrá-la por completo. Em seu envolvimento sexual com ele, Nina se vê como uma massa sem forma, um monstro que não pode ser vulnerável.
Apesar dos elementos formais que visam criar empatia, é um grande esforço compreender Nina e adentrar seu universo — fico curioso, inclusive, sobre o que Ia Sukhitashvili fez para imergir no papel. Sua performance fica em segundo plano, mesmo sendo a protagonista, e são poucas as cenas em que sua alma transparece, como a do choro após o banho, quando recebe a notícia sobre uma das meninas que operou. As quase duas hora
s e meia de duração nos exaurem, deixando-nos desolados, cheios de questionamentos existenciais. Ainda que esse possa ser o objetivo do filme, sair emocionalmente devastado, sem nenhum ânimo, não é exatamente um elogio.
Assim, Abril poderia ser resumido por outra frase de Lispector, esta em Cérebro Eletrônico: “Sou tão misteriosa que não me entendo”. A falta de compreensão plena pode ser poética e profunda. Neste caso, contudo, resulta em uma experiência sem sentido, distante e evasiva.