Ne Zha (China, 2019)
Título Original: Nézhā zhī Mó tóng Jiàngshì
Direção: Jiaozi
Roteiro: Jiaozi
Elenco principal: Lü Yanting, Joseph Cao, Han Mo, Chen Hao, Lü Qi, Zhang Jiaming e Yang Wei
Duração: 1h 50 min (110 minutos)
É sempre uma tarefa complicada adaptar histórias de mitologias antigas para uma linguagem narrativa que agrade a um público amplo em pleno século XXI. Ne Zha parte dessa premissa para adaptar a história de um menino-demônio que precisa tomar as rédeas do próprio destino, a partir do livro do século XVI A Investidura dos Deuses, cuja autoria é geralmente atribuída a Xu Zhonglin. Vale dizer que este é um dos livros mais adaptados da história da literatura chinesa, com mais de dez versões para o cinema, pelo menos oito para a TV e outras para rádio, video-game e quadrinhos.

A animação chinesa se utiliza de diversos elementos da linguagem cinematográfica das animações norte-americanas, em uma tentativa clara de dialogar com um público mais abrangente e internacional, mas sem abrir mão dos valores e da cultura de seu país de origem (seguindo um movimento geral do cinema chinês). A princípio, pode ser um pouco frustrante. O humor do filme é bastante infantil e pode ser comparado ao da franquia Minions. Porém, com o passar da história, é possível perceber que os temas abordados são diferentes e tratados com mais profundidade do que na maioria dos filmes dos grandes estúdios anglófonos. E é aí que Ne Zha – e, eu diria, o cinema chinês contemporâneo como um todo – ganha o público e se apresenta como alternativa ao que temos como padrão.
O prólogo nos apresenta a história da Pérola do Caos, uma entidade senciente que representa o caos originalmente presente no início do Universo e que absorve toda energia que lhe atinge. O Senhor Supremo Yuanshi Tianzun (uma espécie de Zeus do taoísmo), criador dos Céus e da Terra, a separa em dois artefatos, a Pérola Espiritual e o Orbe Demoníaco, supervisionados por seus discípulos Taiyi Zhenren e Shen Gongbao respectivamente. A primeira deve ser reencarnada no terceiro filho do rei Li Jing, Ne Zha, e a segunda será destruída por um raio em três anos. Um plano de Shen Gongbao leva Ne Zha a se tornar a reencarnação do Orbe Demoníaco, mas Li Jing e sua mulher, Lady Yin, decidem criá-lo com todo o amor possível e privá-lo do conhecimento de sua origem, enquanto ele é treinado por Taiyi para se tornar um caçador de demônios. Enquanto isso, a Pérola Espiritual é secretamente entregue ao Rei Dragão para ser reencarnada em seu filho, Ao Bing, que será treinado pelo próprio Shen. O tempo se passa e Ne Zha se aproxima cada vez mais da idade em que está fadado a ser atingido por um raio mortal.
A partir dessa premissa um tanto confusa para quem não é familiarizado com a história, o filme se revela leve e divertido, apesar de voltado para um público mais novo. As figuras míticas da história original aparecem aqui em formatos clownescos, algumas vezes atrapalhados até demais. Taiyi Zhenren, por exemplo, uma deidade imortal, aqui é um beberrão que se transporta em um porco rosa gigante que voa usando suas enormes orelhas como asas e boa parte dos problemas da narrativa só acontecem por ele ser incrivelmente desleixado. O próprio Ne Zha demora a cativar o público, pois durante boa parte do longa ele se mostra uma criança mimada e irritante – o que seria de se esperar de uma criança-demônio, mas não deixa de ser desinteressante enquanto personagem principal unidimensional -, até o roteiro revelar pontos-chave de sua história que expliquem suas atitudes.
O eventual encontro de Ne Zha e Ao Bing, ambos criados sem o conhecimento do outro e acreditando ser a Pérola Espiritual enviada para livrar a Terra de demônios (o que inclui a criança-Orbe Demoníaco), se revela acidental e amistoso e é um bom ponto de virada na narrativa, trazendo um pouco de leveza para a solidão de Ne Zha.

Com a aproximação do aniversário de Ne Zha, o filme se dirige ao seu clímax, que envolve uma grande batalha representada pela dualidade bem versus mal, mas subvertida pela possibilidade de Ne Zha, a representação do mal, dominar o seu próprio destino e usar seu poder em prol da comunidade governada por seus pais. Este é o momento mais interessante do longa, que finalmente deixa o tom cômico de lado e diz a que veio, entrega cenas de batalha grandiosas e bonitas e mergulha de cabeça na questão espiritual que permeia a história. Mesmo que consiga desviar da inevitável morte da personagem-título (e escrevo este texto depois do lançamento de Ne Zha 2, então entendo que esta informação já não é mais spoiler), o filme o faz sem quebrar com sua própria mitologia e sem ignorar o alto custo dessa virada de destino tanto para Ne Zha quanto para sua contra-parte e outra metade espiritual Ao Bing.
É um ótimo filme que não se destaca entre outros bons filmes e sua repercussão no ano de lançamento, boa na China, mas não tão forte em outros países, é resultado disso. Fiquei com a sensação de que caso se assumisse como uma animação voltada para um público um pouco mais velho, poderia ter chamado mais atenção, já que perde alcance por se infantilizar demais. Vale citar que a bilheteria fechou em mais de 740 milhões de dólares, se consolidando como a 12ª maior bilheteria do ano e a maior para um filme não falado em inglês. Terminei sem entender o que levou sua continuação a se tornar a quinta maior bilheteria da história (e subindo) e a única animação a alcançar a marca de 2 bilhões de dólares, mas cativado o suficiente para querer assistir mais da história deste menino endemoniado que domou o próprio destino e de seu irmão de espírito, o príncipe dragão.
Agora sim um spoiler da próxima crítica: ainda bem que eu quis ver o segundo filme , pois este se revelou um dos maiores filmes dos últimos anos, com certeza digno de sua bilheteria.