Crítica | Saneamento Básico – O Filme e Ilha das Flores

Saneamento Básico – O Filme (Brasil, 2007)

Título Original: Saneamento Básico – O Filme
Direção: Jorge Furtado
Roteiro: Jorge Furtado
Elenco principal: Fernanda Torres, Wagner Moura, Camila Pitanga, Bruno Garcia, Lázaro Ramos, Paulo José, Tonico Peira, Janaína Kremer Motta e Zéu Britto
Duração: 112 minutos
Distribuição brasileira: Vitrine Filmes

Sessão dupla de Jorge Furtado: Saneamento Básico, o Filme e Ilha das Flores retornam às telonas em ótimo momento do cinema brasileiro 

Já imaginou como seria um filme com Fernanda Torres, Wagner Moura e Camila Pitanga? Pois bem, o diretor e roteirista Jorge Furtado teve essa mesma ideia 18 anos atrás e criou uma das melhores comédias do cinema nacional: Saneamento Básico, o Filme. Ficou com vontade de assistir? Ótima notícia: ele está de volta aos cinemas em uma versão restaurada em 4K, em exibição conjunta com o curta-metragem Ilha das Flores, outra obra-prima assinada por Furtado.

Em 2025, vimos Fernanda Torres ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz por Ainda Estou Aqui (2024). Pouco depois, acompanhamos Camila Pitanga alcançar popularidade viral como a vilã Lola de Beleza Fatal. Mais recentemente, tivemos o orgulho de ver Wagner Moura vencer o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes por seu papel em O Agente Secreto. Antes desse reconhecimento, que consolida a atual fase prolífica do audiovisual brasileiro, o trio interpretava Marina, Silene e Joaquim, respectivamente, moradores da fictícia — ou nem tão fictícia assim — comunidade Linha Cristal.

Na trama, os três, junto a outros habitantes locais, se inscrevem em um edital governamental para implementar um sistema de tratamento de esgoto em um dos córregos da comunidade. Entretanto, descobrem que a única forma de acessar o recurso financeiro é realizando um filme. O que começa como um projeto de curta-metragem educativo logo se transforma em algo maior, mais ambicioso, mais… cinematográfico. Aos poucos, o grupo inexperiente e pacato mergulha nos desafios e encantos da realização audiovisual, sendo inevitavelmente seduzido pela magia do cinema.

Jorge Furtado é genial na direção e no roteiro, e em igual medida. Seus diálogos mordazes, cotidianos e diretos são a chave para o timing cômico impecável do filme. Embora soem espontâneos, estão carregados de subtexto. É um verdadeiro jogo de réplicas e tréplicas, pontuado por sacadas brilhantes e críticas sociais afiadíssimas. Passamos desde discussões sobre a definição de “ficção” — um questionamento que atravessa várias cenas, guiando o cerne da narrativa a partir da leitura de um dicionário — até as hilárias brigas entre Fernanda Torres e Wagner Moura, cuja química em cena representa, com perfeição, o arquétipo do casal brasileiro.

Da mesma forma, Furtado constrói uma mise-en-scène que explora ao máximo a profundidade de campo. Os personagens ocupam o espaço de maneira dinâmica, interagindo entre si e com o ambiente, o que mantém o espectador sempre atento, pronto para rir da próxima trapalhada desses cineastas amadores.

Brilha, também, o uso inteligente da metalinguagem. Saneamento Básico, o Filme é, essencialmente, um filme sobre fazer um filme. Todos os processos — elaboração do roteiro, reuniões para conseguir financiamento, escolha dos atores, definição de figurino, produção, edição, trilha sonora — são escancarados de forma cômica, didática e encantadora. A sequência do “olha quem vem lá” é, por si só, absolutamente genial. Os inúmeros takes, a preocupação quase obsessiva com detalhes técnicos e o contraste com o texto tosco da cena compõem o ápice do humor da obra.

Por trás de tantas camadas de humor e crítica, surge uma reflexão poderosa: qual é o limite entre o cinema como ferramenta de transformação social — simbolizado pelo desejo inicial de construir o sistema de esgoto — e o cinema como objeto de fascínio, glamour e vaidade — representado quando a natureza vira uma mulher seminua, embalada por uma trilha clássica, e o que importa passa a ser o prestígio, os prêmios e os aplausos? É uma linha tênue, tão tênue quanto a diferença, tão discutida no filme, entre “fossa” e “fosso” — termos que os personagens tratam como sinônimos, embora carreguem motivações radicalmente distintas.

Anos antes de dirigir uma das melhores comédias brasileiras, Jorge Furtado já havia realizado o melhor curta-metragem do nosso cinema. Ilha das Flores carrega o mesmo espírito crítico, conduzido por uma narração que dita o ritmo da montagem com agilidade e precisão, guiando o espectador pela história dos habitantes da região que dá nome ao filme. Em apenas 12 minutos, Furtado constrói uma narrativa pedagógica, didática e, ao mesmo tempo, quase impassível, que desnuda as contradições do mundo com uma frieza desconcertante.

Assistir aos dois filmes na sala de cinema é uma oportunidade rara e imperdível. Seja para refletir sobre a riqueza histórica do cinema brasileiro, seja para compreender como reconhecer o valor da nossa própria produção audiovisual, é um exercício que precisa ser constantemente revisitado — ou, para alguns, descoberto pela primeira vez.

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