Crítica | Estranho Caminho

Estranho Caminho (Brasil, 2023)

Título Original: Estranho Caminho

Direção: Guto Parente

Roteiro: Guto Parente

Elenco principal: Lucas Limeira, Carlos Francisco, Rita Cabaço, Tarzia Firmino, Renan Capivara e Ana Marlene

Distribuição brasileira: Embaúba Filmes

Duração: 83 minutos

ATENÇÃO: ESSA CRÍTICA CONTÉM SPOILERS.

Como foi muito dito nos últimos anos, paga-se um alto preço ao viver um momento histórico. E a pandemia de Coronavírus não deixou marcas apenas pelo gigantesco número de mortos, mas também das histórias dos que sobreviveram aos acontecimentos. Parte dos produtores audiovisuais insiste em manter certo afastamento dos acontecimentos, às vezes pontuando um momento específico do tempo com o uso de máscaras, ou simplesmente fingindo que nada aconteceu. Muito se disse sobre o público não estar pronto para uma obra que abordasse o momento, mas Estranho Caminho está nos cinemas para provar que, na realidade, o que faltava era um diretor com a sensibilidade de Guto Parente

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Acompanhamos no longa-metragem a história de David (Lucas Limeira), um garoto nascido no Brasil mas que imigrou com a mãe para Portugal e retorna ao país de origem para a exibição de seu primeiro longa-metragem, selecionado para exibição em um festival. O que ele não esperava era que isso ocorreria bem no momento em que estoura a pandemia no Brasil, e que ele ficaria preso na cidade sem recursos por conta da quarentena. Então, quando se vê já sem opções, pede ajuda ao pai (Carlos Francisco) com quem não conversa há dez anos.

O que poderia ser um drama familiar relativamente simples ganha potência tanto por conta do plot twist narrativo muito bem executado quanto pela facilidade que a obra tem em apresentar uma estética pouco usual de maneira descomplicada. E um funciona bem justamente por causa do outro, gerando uma simbiose cinematográfica cujo verdadeiro beneficiado é o espectador.

A construção do personagem David é um elemento essencial para esse bom funcionamento. Parte de sua personalidade é muito facilmente conectável, como o garoto apaixonado por cinema e que chega na cidade desavisado da tragédia mundial que está acontecendo, pensando em reencontrar seus amigos e em exibir seu trabalho. Mas a sua formação como cineasta é essencial, tanto pelos comentários já no início do filme de seus amigos sobre seus filmes mais experimentais como com o pedaço de seu filme que é exibido dentro da obra. Eles preparam o espectador para as intervenções oníricas essenciais para a manutenção da obra como algo sensível e não-invasivo, mesmo considerando o período complicado que ela representa e a quantidade de feridas abertas que ainda possa tocar.

A partir do momento em que compreendemos o plot twist da narrativa, o convite à reflexão se torna mais intenso. Isso não ocorre pela simples inversão da narrativa que cria a vontade de rever toda a obra para reparar em detalhes, mas por conta do pensamento sobre a solidão absurda e a fantasmagoria do período que vivemos como sociedade. Como o isolamento acabou criando projeções sobre as pessoas e as relações ainda mais exacerbadas do que realizamos apenas pela nossa condição humana. E como a ausência também é um elemento que nos faz repensar sobre as pessoas e em como desejamos ficar em paz com nossas memórias.

Podendo terminar naquele momento e já criando o que seria considerado pelo cinema clássico uma narrativa completa, é a sensibilidade do diretor e roteirista que coloca aquela última cena, que cita o título da obra e dá uma possibilidade de pacificação com toda a violência sutil que é colocada até então. É o final de certa forma otimista que ajuda a lidar com nossos próprios fantasmas, e a criar esse cinema que trata um período pavoroso abrindo portas ao invés de fechá-las.

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