Fucktoys (EUA, 2025)
Título Original: Fucktoys
Direção: Annapurna Sriram
Roteiro: Annapurna Sriram
Elenco principal: Annapurna Sriram, Sadie Scott, Damian Young, Brandon Flynn, François Arnaud, Big Freedia, Marcus Anderson Jr e Jowin Marie Batoon
Duração: 106 minutos
Fucktoys é um filme com uma premissa quase prosaica: uma garota que consulta um vidente que lê seu tarot e descobre que está amaldiçoada parte em uma busca entre seus contatos, clientes e colegas para conseguir a soma em dinheiro necessária para fazer o ritual de sacrifício de um cordeiro para livrá-la desse mal. Isso poderia facilmente se desenvolver para um drama, um thriller ou até um horror – mas a diretora Annapurna Sriram segue no caminho mais ousado de uma comédia satírica queer impressionante no formato e conteúdo.

A fluidez é uma das palavras que guia o longa. Desde a fluidez de gênero e sexualidade de seus personagens até a fluidez narrativa, que inspirada em John Waters adentra em águas bastante profundas com maestria, a obra consegue transportar o espectador para o universo cor-de-rosa de sua protagonista, AP (Annapurna Sriram). Cheia de crenças sobre o sobrenatural e com o desejo profundo de seguir com a sua vida sem encarar a necessidade de olhar para dentro de si mesma, ela consegue nos levar a um universo fantasioso com apenas um pé na realidade.
Toda a direção de arte parece seguir esse design, de tentar ao máximo ser etéreo e atemporal ainda mantendo um pé na realidade da trama mais linear que direciona o roteiro. Talvez o principal exemplo disso seja a casa de AP, um conjunto de quarto e banheiro no campo aberto, completamente verde. Mas ainda assim, com uma cama que parece extremamente confortável e até luxuosa, e um varal de roupas completamente idênticas – o seu icônico conjunto de saia e cropped floral. Existe a tecnologia do celular, mas ainda assim ela tem um telefone fixo – que obviamente não está ligado a nada neste campo aberto sem eletricidade. Mas o que importa claramente não é o realismo da situação, mas a pretensão de que tudo aquilo é comum e simples. É essa normalização da estética camp poderosa que consegue sustentar a suspensão da realidade para que possamos apreciar a obra.
Trabalhando como diretora, roteirista, atriz principal e também produtora, percebe-se que Sriram coloca muito de si mesma na obra. E essa é uma combinação perigosa, que pode gerar um filme de ego muito inflado e com decisões mais arbitrárias, dado que depende muito da cabeça de apenas uma pessoa. Aqui, pelo contrário, isso acaba sendo uma grande força, com essa personalidade transbordando para todos os elementos.
O que talvez mais fortaleça o filme é uma atitude completamente transgressora, que parece uma lufada de ar fresco em meio a um mundo extremamente careta. Nessa realidade criada, muitos dos julgamentos morais estão completamente suspensos, como aqueles em relação ao gênero e à sexualidade das personagens. Em um momento muito raro, temos uma pessoa não-binária atuando, e o personagem em cena consegue acompanhar sua relação de alternância com o gênero. Ao mesmo tempo, ele mostra ao espectador que entende que a bolha criada é completamente superficial e limitada: a cena de AP se envolvendo sexualmente com um homem negro no banheiro é um ponto bastante importante para mostrar essa sua ciência dos privilégios apresentados pelas personagens. Sua falha de caráter serve para lembrar ao espectador que tal vivência só seria permitida a algumas pessoas.
Tudo isso para tratar o seu real grande tema que é a falta de sentido de sua própria invisibilidade em uma sociedade que a trata bem apenas quando consegue consumi-la como um produto. AP parece pouco consciente de que sua maldição é auto-infligida, não por uma questão moral com a prostituição, mas com sua falta de propósito e de compreensão com o mundo ao seu redor. O que acompanhamos é na verdade a sua busca por si mesma, disfarçada pelos 1000 dólares necessários para resolver seus problemas de maneira mágica.
E para mostrar que a lição de casa sobre os filmes que antecedem essa sua visão de mundo foi feita, a diretora escolhe uma fotografia analógica em 16mm, dando o aspecto visual do cinema mais experimental dos anos 1970 e 1980. Mais um ponto para a obra, trazendo como brinde a textura bastante específica e vintage novamente à tona.
O resultado final é justamente o que vemos: uma grande ode ao cinema de John Waters com um olhar extremamente feminino e sensível. Como uma filha espiritual que bebe da fonte do pai para criar algo fresco e poderoso que poderá falar com uma nova geração, Annapurna mostra que sua voz será ouvida – de salto alto e com lingerie de tule.