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Sal Sobre a Língua (Austrália, 2024)

Título Original: Salt Along the Tongue
Direção: Parish Malfitano
Roteiro: Parish Malfitano
Elenco principal: Laneikka Denne, Dina Panozzo, Caroline Levien, Mayu Iwasaki, Maria de Marco, Liz Lin, Olga Olshansky e Helen V
Duração: 113 minutos

Apesar da pouca idade, Parish Malfitano mostra muita maturidade em seus longa-metragens. Se seu filme de estreia, Coração Dilatado (2020), ele já demonstrou muito controle sobre a narrativa e aspectos da direção, Sal Sobre a Língua demonstra que não foi apenas uma sorte de principiante. Com algumas temáticas em comum, o novo filme adentra o universo feminino ainda mais, e traz consigo ótimas ideias e grandes questionamentos para o público.

A trama do filme parece confusa de início, ainda mais por conta do prólogo visualmente interessante, mas que faz sentido para o público apenas ao final da obra. Acompanhamos a vida de Mattia (Laneikka Danne), uma menina tímida e bastante introspectiva, que vê tudo mudando ao seu redor quando sua mãe morre subitamente e ela precisa se mudar para a casa da tia Carol (Dina Panozzo), irmã gêmea idêntica da mãe. Entre seu processamento do luto e uma compreensão maior dos dramas familiares que ficaram em suspenso, ela passa a se conectar ainda mais com a mãe.

Uma das grandes escolhas criativas da obra é nos dar a mesma quantidade de informações que a protagonista possui, sem compreender exatamente quem é esta tia ou o que está acontecendo com ela. Entendemos que sua vida tem uma dinâmica muito diferente, com um grupo de mulheres próximas que são suas colegas de trabalho e cujo comportamento parece de um coven de bruxas, mas nunca temos a compreensão exata de quais os laços que as unem. Ao mesmo tempo, também entendemos que a tia lida com problemas internos cuja válvula de escape é a bebida, mas só conseguimos criar uma imagem mais nítida sobre isso quando Mattia o faz. Assim, por mais que ela seja uma personagem bastante inacessível sentimentalmente para o público, torna-se muito mais fácil percorrer essa jornada com ela.

E novamente o diretor faz um uso bastante inteligente das cores para distinguir tanto as personagens gêmeas quanto os acontecimentos da trama. Começamos a obra vendo um feitiço sendo lançado no prólogo, com um tomate vermelho e maduro sendo utilizado para gerar o sangue em uma jovem desconhecida. E este vermelho vai estar sempre presente na figura de Carol, uma mulher bastante passional, enquanto sua irmã Mina é ligada a um verde que, quando transformado em luz, se torna um tanto fantasmagórico, mas que também equilibra a passionalidade com certa tranquilidade. Aos poucos, quando Mattia passa a se conectar com a mãe falecida, ela também passa por essa transformação assumindo roupas esverdeadas. Assim, o aspecto visual do filme serve para dar mais camadas de compreensão à trama, tornando toda a experiência sensorial da obra mais complexa.

E, pensando nas camadas visuais apresentadas, o filme também utiliza a comida como um elemento para criar e desfazer laços. Desde o início, com Mina cozinhando para a filha e fazendo sua geleia de figo, percebemos que este é um aspecto importante para essa família. Ao compreendermos que a irmã também cozinha, e mais do que isso, trabalha como cozinheira em um programa de receitas para a televisão, é dada ainda maior importância ao alimento. Às vezes utilizado como conexão, como quando Mattia come a geleia de figo após o falecimento da mãe e retorna espiritualmente àquele local de afeto e amor, e às vezes como uma espécie de maldição, como a cena em que a mesma garota come um falafel e acaba vomitando um chumaço de cabelo, a dualidade do alimento serve para refletir a dualidade da relação entre as personagens.

É impressionante a capacidade que o diretor apresenta de adentrar um universo feminino com facilidade e trazendo pensamentos profundos dali. Há uma personagem não antes mencionada, Yuma (Mayu Iwakasi), que aparece no início do filme como uma personagem muito próxima a Mattia, quase como uma espécie de segunda mãe não consanguínea, e que não pode assumir a sua custódia. No entanto, no meio do filme, há uma cena na qual Yuma e Mattia estão ambas comendo, cada uma em sua casa, de maneira perfeitamente espelhada. Esse elemento da refeição compartilhada como uma comunhão das almas é bastante tocante, e consegue contrastar com todo o elemento de possessão que acontece em relação às irmãs. É quase como um recado do filme sobre a não necessidade de laços sanguíneos para a compreensão de família, enquanto a experiência compartilhada entre as irmãs que nunca obteve resolução funciona como o outro lado da mesma moeda. O trauma nunca resolvido entre elas insiste em retornar para ambas, com essa situação ainda trazendo um reflexo para a nova geração, Mattia.

Assim, quando nos é apresentada a questão da vespa do figo que precisa se sacrificar para que seus filhotes possam viver, estamos lidando com essa metáfora sobre aquilo que uma mãe precisa resolver para poder permitir à nova geração a sua existência. Isso vai se refletindo até a cena final do filme, com mais uma geração vindo ao mundo. Temos então essa mensagem sobre a sororidade e a necessidade de proteção daqueles que amamos do mal, algo quase universal, e que funciona para todas aquelas etnias de mulheres apresentadas ao longo do filme. Curiosamente, a obra também não apresenta figuras masculinas. Temos apenas um homem, utilizado como instrumento para um feitiço. Isso apenas reforça a questão de sororidade apresentada, ainda mais ao considerarmos que, para as irmãs, todo este mal dentro delas vem de uma figura masculina.

No fim, ainda que apresente um filme bem amarrado narrativamente, as questões levantadas aqui são profundas e deixam as espectadoras em um forte estado de reflexão. Utilizando diversas possibilidades narrativas para criar uma experiência sensorial profunda, a obra traz a arte como uma maneira de lidar com nossos próprios demônios.

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